Réia: Notas de criação do cenário II

Saudações heróis! Nessa segunda coluna vamos falar sobre os nomes usados em Réia.

Criar nomes para um cenário, para um mundo de fantasia, sempre é uma dor de cabeça. Se você não tem pretensões de lançar o seu cenário, a dor de cabeça é bem menor, uma vez que você só teria que enfrentar os gracejos de seus jogadores. Mas quando é um cenário com alguma pretensão comercial, a coisa complica…

Um recurso muito legal para se criar nomes é procurar sites de tradução e usar palavras com significados interessantes em idiomas pouco conhecidos.

Obviamente, ao se criar nomes para um cenário, deve-se evitar nomes que soem evidentemente ruins em nossa língua, a chamada “Síndrome dos nomes de Star Wars”: assim Sifo Dias virou na dublagem Saifo Dias e Conde Dokoo virou Conde Dokaan.

Contudo, em Réia eu optei (desde o início, quando ele era apenas o mundo que criei para jogar D&D 3ª Edição) por usar corruptelas e citações de nomes mitológicos e históricos.

Essa foi a maneira que encontrei para os jogadores facilmente associarem o nome usado no cenário com aquilo em que ele é baseado. Assim, em vez de Europa, Eurone. Em vez de Ibéria, Íbria. Em vez de Zeus, Zéter. E em vez de Carlos Magno, Carlomano, que é nome do irmão de Carlos Magno, cuja a morte prematura permitiu que Carlos Magno unificasse os Francos (que aliás, em Réia, se chamam Franis).

Muitos adoraram a idéia, começando pelos próprios jogadores da minha campanha de playtest, que inclusive ajudaram a criar alguns dos nomes segundo esse princípio, e nunca houve nenhum gracejo por parte deles.

Mas desde que apresentei o cenário aqui na REDE, alguns reclamaram de um ou outro nome. Em todas as vezes, essas reclamações foram meramente subjetivas. Ou então devido a algum trocadilho bobo.

A Língua Portuguesa é talvez um dos idiomas mais ricos do mundo. Existem palavras que existem em nossa língua e que não existem em muitos idiomas, como a palavra “saudade”. Temos o magnífico fonema “ão”, sempre citado por Mário de Andrade. E há outros exemplos da beleza da Língua Portuguesa.

A nossa língua é então tão rica e vasta que, por mais que algum autor tente, sempre acabará usando um nome em que alguém descobrirá algum gracejo com ele. E aí o problema não é do autor: o problema é do leitor.

O tipo de leitor que acha que nomes de origem inglesa são mais adequados para cenários de fantasia, principalmente em relação a nomes que tenham o Português como base fonética.

Alguns jogadores de RPG infelizmente se deixam levar por uma mentalidade absolutamente colonizada, e acham que nomes em português não são adequados para mundos de fantasia. Vamos dar um exemplo…

Muitos sempre reclamam das traduções da Devir (muitas vezes com razão). Reclamam, por exemplo, de terem traduzido alguns dos nomes de lugares de Forgotten Realms. Eu dou toda razão a eles: não se traduz nomes próprios. O meu país não se chama Emberil e muito menos moro em January River. Rio de Janeiro e Brasil, com s, por favor.

Contudo, várias vezes, ouvimos como defesa do nome original algo do tipo “é mais bonito em inglês”.

Como assim é mais “bonito” em inglês? E aí o cara responde estufando o peito, enrolando a língua e dizendo: WATERDEEP!

Só que ele esqueceu de uma coisinha…

Para quem é americano ou inglês, Waterdeep não soa na cabeça dele com essa imponência toda não. Na cabeça dele, Waterdeep soa como… Água Funda*. Você pode enrolar a língua o quanto quiser ou ter o inglês mais perfeito do mundo. Continuará sendo Água Funda.

“Este é o grande Khelben Cajado Negro, o maior mago e protetor de… Água Funda”.

Sim, Waterdeep é tão mundano e banal para um americano quanto Água Funda é para nós. Contudo, os jogadores americanos nunca tiveram nenhum problema com isso e a prova é que eles tornaram Forgotten o cenário mais jogado no mundo todo.

Mas se um escritor de RPG brasileiro fizesse um cenário de fantasia medieval em que a principal cidade se chamasse Água Funda, com certeza ele seria sistematicamente ridicularizado e execrado por uma parte considerável de nossos jogadores…

Como eu disse, o problema não é o autor: nesse caso, o problema é a mentalidade de certos jogadores de RPG brasileiros. O que é mais triste não é a falta de respeito com o autor e o seu trabalho (embora isso naturalmente seja péssimo), o mais triste é a demonstração de profunda ignorância e de falta de respeito com a própria língua. E alguns ainda se orgulham disso…

É como eu sempre digo para os meus alunos: ninguém é obrigado a ser culto, mas não há nenhuma glória em demonstrar ser ignorante. Eu, como professor, tenho a obrigação de mostrar outras possibilidades musicais e artísticas aos meus alunos, tentar ampliar o universo cultural deles e explicar o que eles não entenderem. A escolha são eles que fazem.

Como autor de RPG, estou oferecendo um cenário rico em referências históricas e mitológicas, e todos os nomes remetem a essas referências. Isso deveria bastar para as pessoas verem o quanto os nomes que escolhi são bacanas.

Embora seja um direito do jogador, enquanto consumidor, gostar ou não desses nomes, eu me reservo o direito de lamentar a opção de alguns, que no fundo é feita com base no pensamento equivocado e colonizado que citei acima.

Porque se eu me chamasse Marc Telly, escrevesse em inglês e o nome do cenário fosse Rheya, duvido que esses jogadores fizessem isso.

Mas cada um com sua escolha.

De minha parte, eu ofereço Réia.

*(Nota do autor da coluna: Na tradução oficial ficou Águas Profundas. O pessoal da Devir tentou dar algum charme na tradução…)

Réia é um cenário de fantasia medieval épica
criado por Marcelo Telles para o sistema D20.

Nota da REDERPG: Não percam, no próximo domingo, mais um conto de Réia, e no primeiro domingo de abril, o próximo Réia: Notas de Criação do Cenário.

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