Thor, virtude, sacrifício. – SPOILERS.

É a primeira vez que escrevo nesta página. Sempre digo que a primeira impressão é a que fica. A primeira apresentação é sempre tensa, ainda mais com a responsabilidade de honrar o rederpg, um espaço respeitável e valoroso em seriedade e compromisso com as questões mais profundas que o Role Playing pode suscitar.

Sou professor, dou aulas de história, filosofia e sociologia. É meu trabalho apresentar as idéias, teorias e práticas de autores diversos. Neste texto, me sinto como se fosse a primeira vez que entrasse em sala de aula para começar uma disciplina que nunca trabalhei antes. Coisa séria. Dessa forma, é pertinente começar meu trabalho de redator de cinema com o filme Thor. Ontem fui com minha mulher e deixei minha filha bebê sob os cuidados minha sogra.

O filme me surpreendeu. Sempre fico com medo quando fazem filmes sobre temas que eu gosto, especialmente quando tratam de mitologia. Às vezes me decepcionam como aconteceu no último A Fúria de Titãs. Porém, com uma grata surpresa, não aconteceu isso com Thor. Dentro da estratégia da Marvel de lançar os filmes dos heróis que compõe os vingadores, assim foi com o Homem de Ferro e o Hulk, e para o já esperado Capitão América, o filme sobre o deus nórdico impacta, como um golpe do Mjolnir, o martelo mágico de Thor.

O primeiro documento escrito que temos sobre mitologia nórdica é de Snorri Sturluson[1], um islandês do século XIII, que escreveu uma coletânea de ensaios, diálogos e reflexões sobre a mitologia de origem escandinava (a Islândia é uma colônia da Noruega). Todavia os historiadores e filólogos, entre eles J.R.R. Tolkien[2], autor de O Senhor dos Anéis, consideram que o livro de Sturluson, chamado Edda[3] em prosa, ou Edda menor, seguia uma coletânea mais antiga, toda em poemas, chamada Edda Maior, ou Edda poética, que apesar de seu documento preservado em Copenhage constar do século XV, sua origem teria sido oral, cujo primeiro manuscrito teria sido do século X, mais antiga, portanto, que a Edda em prosa.

A principal diferença entre as duas Eddas é que a menor, de Sturluson, é uma espécie de manual para a confecção de poemas mitológicos, com a descrição dos deuses e sua origem e façanhas[4]. Sturluson se apresenta como cristão, e aproxima os deuses nórdicos com Adão e Eva e a mitologia greco-romana. Thor, por exemplo, era um remanescente de Tróia, de onde viria seu nome e todos os deuses eram na verdade reis poderosos da Escandinávia, que foram divinizados. O texto da Edda maior, poética, conserva mais características de culto, hinos religiosos propriamente ditos, em que Thor é de fato o deus do trovão, poderoso e imbatível, filho e maior arma de Odin, o pai de todos os deuses[5].

Com a lenta cristianização, e posterior modernização, os deuses do Volhalla se tornam contos infantis, como o nosso saci-pererê, Iara ou curupira. A mitologia nórdica é recuperada no período romântico do século XIX. O compositor alemão Richard Wagner compôs uma série de óperas interligadas, o ciclo do Anel dos nibelungos, que faz referência a saga dos volsungos, família da Escandinávia, um poema contemporâneo aos eddas. Ali Thor é apenas um dos deuses que finalmente partem para o combate derradeiro, o Ragnarok, contra os gigantes, os demônios de fogo de Músspel, que finalmente destroem o universo, para que ele pudesse ser reconstruído.

A apropriação da mitologia nórdica pelos nazistas é fato histórico. Assim como a música de Wagner e a filosofia de Nietzsche, com a perspectiva trágica e o espírito de combate oriunda dessa mitologia. O livro O Mito Nazista, de Philippe Lacoue-Labarthe, mostra como essa apropriação feita pelo nacional socialismo da mitologia nórdica foi feita como inspiração do ideal nazista para as massas.

Minúcias históricas de origem à parte, o filme é inspirado nos quadrinhos Marvel de Stan Lee, que surgiram na década de 1960 e que até hoje são publicados. Nesses quadrinhos, que eu lia bastante nas décadas de 80 e 90, Thor não é necessariamente um herói infantilizado, mas sim adolescente. Conforme o espírito Marvel, indica o herói meio fanfarrão, meio honrado, que adora lutar, porém preserva a virtude divina. Eis o personagem do filme Thor.

O filme é dirigido por Kenneth Branagh, ator e diretor norte irlandês, consagrado por atuações e direções em peças e filme de Shakespeare. Em termos de habilidade de condução e compreensão de fantasia no mundo moderno e na literatura dramática inglesa, não havia melhor escolha. Desde Henrique V até Hamlet, Branagh dirigiu filmes com ações de guerra e tensão nos diálogos shakesperianos, além de peças de teatro sobre o tema. Artista cabeça, daqueles que os estudantes de teatro e cinema gostam de falar nas baladas. Fã declarado dos quadrinhos da Marvel, Thor foi seu primeiro filme em 3D.

Fiel ao espírito dos quadrinhos, o roteiro balança entre momentos de heroísmo acentuado e humor corriqueiro, entre batalhas vigorosas e diálogos sobre virtude e poder. O ator australiano Chris Hemsworth se preparou bem para o papel, não estraga na interpretação, faz um bom playboy pitbull nórdico com sua arrogância mimada de deus do trovão sarado. O elenco de apoio também é excelente, com Anthony Hopkins como Odin, Nathalie Portman como Jane Foster e Stellan Skarsgard como o dr. Erik Selvig. O principal antagonista, Loki, é interpretado pelo sóbrio Tom Hiddleston.

Os efeitos de 3D são pertinentes ao roteiro, não ficando exagerados. O mote de fusão entre a mitologia e a ciência, sendo os nove mundos que compõe a cosmologia nórdica medieval, equiparados com sistemas planetários em interligação com os ‘buracos de minhoca’, fendas no espaço-tempo da teoria de Einstein, que permitiriam a passagem e a viagem entre grandes distâncias espaciais. A Árvore de Yggdrasill, o freixo do mundo, cujos ramos se conectariam para formar os Nove Mundos, entre eles Asgard, dos deuses, e Midgard, a terra, é desenvolvida de maneira esplêndida como uma constelação de sistemas solares é surpreendente em 3D.

Tolkien dizia que a principal contribuição da mitologia nórdica para a civilização européia era o dogma da coragem. Os vikings ensinaram que uma luta não pode ser derrotada quando não se tem esperança. A resistência se torna imbatível, porque nem a esperança pode ser destruída. A sabedoria do Volhalla, em que os maiores heróis que tombariam em combate seriam resgatados pelas valquírias garantia que a morte era apenas um passo para o mundo dos deuses, em que mesmo lá todos seriam destruídos no Ragnarok. Apenas a virtude restaria, a honra de lutar ao lado dos deuses.

Essa estrutura sacrificial existe no filme. Thor é exilado de Asgard porque desafia o pai e se torna orgulhoso. Odin o pune, retirando seus poderes e o privando de Mjolnir, o martelo. Somente quando Thor aprende, justamente com os mortais, o valor do cuidado, da amizade e da humildade, enfim do serviço, dando sua vida em troca dos mortais, que seu martelo finalmente retorna aos seus cuidados.

Esse é o principal significado do filme. A nobreza e a realeza exigem serviço. O desapego do poder é condição para que se possa exercê-lo de forma virtuosa e justa. É isso que Odin busca ensinar a Thor. Esse era o ensinamento mais profundo da aristocracia medieval, da cavalaria e da realeza. Esse ensinamento, presente em épocas imemoriais em qualquer reflexão sobre nobreza no ocidente, desde os gregos de Homero até a cavalaria cristã, também se preserva na mitologia nórdica, existente nos quadrinhos e mantida no filme.

O drama familiar da nobreza também está presente. O personagem trágico Loki, filho do rei dos gigantes do gelo, adotado e criado por Odin como seu próprio filho, recebe essa revelação de forma atormentada. Invejoso do irmão, ambicioso pela coroa de Asgard, Loki se percebe usado pelo pai, que o trouxe de Jotunhein ainda bebê, apenas como espólio para ser usado como alternativa para a paz entre deuses e gigantes do gelo. Revoltado, manipula a todos para finalmente subir ao trono. No fundo, Loki buscava o respeito do pai adotivo e a admiração que Thor recebia dos asgardianos. O trágico é que apesar de todas as boas intenções, Loki não aceita seu lugar na corte, que é inferior, e ao tentar mudar as coisas mesquinhamente, transforma tudo em catástrofe.

Concluindo, chama atenção o cuidado com a escolha do elenco. Pesa sobre a mitologia nórdica, devido inclusive à sua potência de virtude e coragem, a acusação de ser racista e sectarista, como os nazistas a interpretaram. Na verdade toda estrutura aristocrática, pela própria definição de uma casta ser considerada melhor, tem esse risco. A divisão entre nobres e plebeus já é incômoda em nossa mentalidade democrática, e mesmo em monarquias constitucionais modernas, como na Inglaterra e nos países escandinavos, muita gente critica.

Dessa forma, a proposta do roteiro e da escolha de elenco foi diminuir esse contraste. Ainda existem deuses e povos diferentes. Loki é um gigante do gelo, está fadado irremediavelmente a isso, e nem todo amor de Odin pode mudar seu destino de inimigo dos deuses, fadado ao fracasso. Os mortais da terra são fracos e dependem dos deuses, e isso não muda. Porém, entre os três amigos, todos asgardianos criados nos quadrinhos, podemos encontrar um oriental, e Heimdall, o guardião da ponte arco-íris, a bifrost, que liga Asgard a todos os demais reinos, é negro. Lady Sif é a guerreira mulher, inspirada nas valquírias.

Essa pluralidade étnica se torna mais contundente quando olhamos para o par romântico. Nathalie Portman, a Jane Foster que se apaixona por Thor e é correspondida com o beijo caloroso do filme, é israelense de família judia. Assim, fecha-se o ciclo democrático moderno, numa perspectiva que não existe nem na mitologia medieval, muito menos no romantismo alemão do século XIX e nem mesmo nos quadrinhos do século XX. Talvez uma necessidade de nossa época. Dispensável talvez.

Afinal, Thor é um blockbuster de verão, e quanto mais politicamente correto, melhor. Ainda assim, senti falta de um asgardiano com a cara de um palestino ou de um iraniano, talvez com a barba de um talebã, talvez um latino brasileiro ou mexicano. Ser democrático etnicamente somente com os aliados é hipocrisia demais mesmo para os padrões de Hollywood.

Por fim, Thor é um bom filme. Para nossas sessões de Role Playing inspira enredos, cenas e diálogos. Mantém a reflexão sobre heroísmo, sacrifício, virtude e nobreza que consagrou a mitologia nórdica e a conferiu um poder civilizatório que até hoje não foi apagado. Mesmo com discrepâncias históricas feitas de forma covarde como os nazistas, o valor da virtude nórdica não é facilmente esquecido, justamente porque transcende uma etnia, uma cor da pele, uma região geográfica ou uma língua. O filme preserva esse significado que ultrapassou o tempo, sendo mantido oralmente por séculos pelos escandinavos, sendo registrado por escrito pelos cristãos, retomado pelos românticos, deturpado pelos nazistas e difundido pelos quadrinhos norte-americanos.

Vida longa ao Poderoso Thor!

Notas (de 1 a 6)
Roteiro: 4
Direção:
5
Produção: 4
Nota Final: 4

 

[1] O site www.brathair.com, de professores especialistas no tema, traz artigos muito bons sobre o período medieval e sua vasta literatura. 

[2] Publicado em 2010 em português, o livro A Lenda de Sigurd e Gudrún, contém poemas que Tolkien fez, inspirados na mitologia e lendas escandinavas. Nesse livro também existe um ensaio em que Tolkien mostra a história da poesia nórdica.

[3] Edda é uma palavra no antigo islandês que significa narrativa, poema, relato sagrado.

[4] O livro Deuses, monstros e Heróis – ensaios de mitologia viking, do historiados Johnni Langer, mostra como essa mitologia se consolidava numa religião prática e objetiva, num estudo sapiencial de virtude e heroísmo.

[5] O Livro de ouro da Mitologia Nórdica, de Carmen Seganfredo, traz as versões em prosa e romanceadas das narrativas dos Eddas. Vale a pena pra quem prefere prosa a poesia.

 

Resenha por Diego Klautau
Equipe RedeRPG

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5 Comments
  1. Caro Diego,

    Acompanho seus textos em outros sites, e particularmente, gosto muito do seu estilo, sempre aprendo mais com suas informações.

    Sobre seu post aqui, gostei muito do Thor, bem feito, bem humorado… em especial o 3D, um dos melhores em filmes que não fosse em animação que já assisti.

    Vou até “emprestar” uns truques do Loki ao meu personagem de RPG…

    Abraços

    Fabiana

  2. Oi Diego,

    Muito bacana sua análise. A preocupação dos diretores com o politicamente correto é uma coisa meio patética na minha opinião. Daqui a pouco todos os personagens terão que ser “reconfigurados” como no filme Avatar para não ofender as sensibilidades.

    Pra ser sincero o que eu mais gostei no filme foi a atuação do “King Laufey”. Ele fez um rei derrotado e ressentido que me convenceu.

    O parricídio de Loki também, foi muito interessante. Ele de certa forma não aceitou ser filho adotivo de Odin, mas sacrificou seu pai biológico. Essa desordenação lhe trouxe graves consequências.

    Parabéns pelo texto.

    Hugo Marcelo

  3. CAAAAAAAAAAAAAAAAACIIIIIIILDDDDDDDSSSSSSSS!!!!!!!!!!!

    Que textão…hehehe, brinks man.
    Muito boa análise, ansioso pra ver suas próximas opiniões e lições de história.
    Sem contar que a revista Veja, publicou uma péssima critica ao fime, dá uma conferida se você puder, acho que é a de março ou de abril. A compositora do texto só podia estar de TPM.

    Abs.
    Luiz Agostinho
    Redator, D&D.

  4. Caracas Diego! Que textão! Praticamente uma proposta de pesquisa… hehehehehehehe

    Mas falando sério. O bom de ler análises e críticas suas é que, além de tomarmos conhecimento de suas impressões dos filmes, temos a oportunidade de tomar uma excelente aula de história.

    É isso ai brother! Gostei muito da sua matéria.

    Que venham muitas!

  5. Excelente estreia, Diego! A resenha ficou soberba!

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