Aumentando o Desafio

(Ou “Eu só jogo em hard mode: on“)

Lendo as regras revisadas da linha Essencial da Quarta Edição de D&D (nos planos da Devir) é possível notar o empenho que os designers da WotC tem colocado em três tópicos básicos das regras: 1 – regras de criação e desenvolvimento de personagens robustas, com opções que tornem o jogo diversificado no que tange o crunch (regras; a parte não-roleplay de D&D); 2 – regras de combate que sejam como jogos de estratégia, mas voltadas para ação turno-a-turno (o mote “pense como um general e lute como um espartano” do game Dragon Age II, da Bioware, poderia ser muito bem aproveitado pela quarta edição), e 3 – condensar as regras de desafios de perícia (DdP) ao envolver mais o processo da construção do desafio com o desenrolar da aventura. Em outros tópicos, menos intensos quanto às regras, mas mais voltados para o jogo em si, a edição atual se tornou mais parecida com as versões ancestrais de D&D – classes marciais perderam o poder diário em função de manobras de encontro, deixando espaço para os usuários de magia arcana e divina utilizarem este tipo de poder como na velha tradição Vanciana (onde um mago “esquece” automaticamente a magia memorizada quando a utiliza; o nome vem do autor da série de livros de fantasia Undying Earth, Jack Vance).

Muito embora a revisão da 4ª edição tenha gerado bastante controvérsia (em parte por sua semelhança com a revisão da terceira edição), boa parte das atualizações das regras vieram a tornar o jogo muito mais coeso (ao menos para as regras). Mas a parte “fluffy” do jogo (interpretação, história, drama que também fazem parte de D&D) continua subutilizada. E nesse quesito, os infames DdP, apesar de mecanicamente revisados, continuam sofrendo com a falta de exemplos e aplicações para o jogo. E, principalmente, o desafio de perícia se tornou muito menos danoso do que a versão inicial planejada. A real novidade fica por conta do número de fracassos, que, independente do nível e complexidade, é o mesmo para qualquer DdP: três; e também a possibilidade de se obter vantagens ao conseguir mais sucessos que o necessário.

No artigo que você está lendo, tentaremos colocar novamente uma importância ao DdP (já que o mesmo vale experiência, e deveria ser parte da aventura, não apenas um meio de jogar dados usando perícias). Começando por…

PERIGO REAL, MORTAL E IMEDIATO

Sem exageros, um DdP deveria representar tanto perigo quanto um beholder olho flamejante, seis goblins atiradores de elite e doze grimlocks lacaios. Os exemplos que temos no Guia do Mestre, diversas edições da Dragon Magazine, e no Rules Compendium (Compêndio de Regras, a ser traduzido pela Devir), são todos de pequenos entraves na vida dos aventureiros, que se estiverem entediados, podem pedir gentilmente ao mestre “ok, nós falhamos; passe metade dos XP’s e vamos para o que interessa“. Um DdP cujo nível de desafio seja o mesmo do grupo deve representar um entrave para os recursos dos personagens – itens consumíveis, pulsos de cura, poderes diários, etc. Se não gasta os recursos dos personagens, não deveria valer experiência. E claro, um “1” natural deveria sim significar algo tremendamente ruim para o grupo…

Utilizaremos aqui um sistema simples de progressão de fracassos – quanto mais fracassos os heróis acumulam, piores são as conseqüências, e maiores as tendências de que o grupo fracasse de forma retumbante.

Número de Fracassos
Resultado
1 O personagem/grupo precisa utilizar recursos para não perder pontos de vida. Entre estes, estão pulsos de cura, itens consumíveis e poderes diários. No caso de um fracasso, considere todos os personagens que falharam perderem um pulso de cura (se for um DdP de nível abaixo do grupo), 2 pulsos de cura ou um item consumível (mesmo nível do grupo) ou 3 pulsos de cura, alguns itens consumíveis ou perder um item mágico comum (nível do DdP maior que o nível do grupo).
Exemplos: desafios que envolvam localizar-se em território desconhecido, achar a saída de uma masmorra ou plano misterioso, encontrar pistas do assassino antes que seus lacaios encontrem os heróis.
2 O personagem/grupo precisa utilizar muito mais recursos para não perder pontos de vida ou mesmo sucumbir. Neste caso, considere todos os personagens que falharam perderem um pulso de cura e recebem dano equivalente ao nível de desafio do DdP (se for um DdP de nível abaixo do grupo), 2 pulsos de cura ou um item consumível e dano equivalente ao nível do DdP (mesmo nível do grupo) ou 3 pulsos de cura, alguns itens consumíveis ou perder um item mágico incomum, além de pontos de vida equivalentes ao nível de desafio do DdP (nível do DdP maior que o nível do grupo).
Exemplos: desafios que envolvam ultrapassar barreiras físicas com grande chance de morte (escalar um pico nebuloso, ultrapassar um rio de lava utilizando cordas, escapar do templo/caverna desabando ao final da aventura).
3 O personagem/grupo precisa utilizar quase todos recursos que possuem para não perder a vida. Considere todos os personagens que falharam perderem 2 pulsos de cura e recebem dano equivalente ao nível de desafio do DdP (se for um DdP de nível abaixo do grupo) além de 1 item mágico comum, 3 pulsos de cura ou um item consumível e dano equivalente ao nível do DdP (mesmo nível do grupo) ou 4 pulsos de cura, alguns itens consumíveis e perder um item mágico raro (ou incomum na falta de um raro), além de pontos de vida equivalentes ao nível de desafio do DdP (nível do DdP maior que o nível do grupo).
Exemplos: desafios que envolvam perigos mortais, como negociar com um dragão realmente indisposto, encontrar um livro em uma biblioteca desabando, ou escapadas dignas de Harry Houdini.

Mas claro, nem todo DdP precisa ser uma sala mecânica se fechando ao redor dos heróis, assim podemos ter…

 

PERIGO REAL, DURADOURO, E ALGO SOCIAL

Nem sempre o efeito danoso da falha do DdP precisa ser redução de recursos (a famosa perda de pulsos de cura das aventuras lançadas antes e no início da quarta edição) ou combate (quantos desafios de perícia não são justamente uma maneira de evitar um tedioso combate contra inimigos fracos?). Muitas vezes, atacar onde realmente dói significa fazer com que DdP sejam danosos não somente à condição física dos heróis, mas também a sua reputação. E, nesses casos, quanto pior a falha, pior é o resultado…

Nesse caso, uma progressão de fracassos além do número mínimo piora (e em muito) a condição dos heróis quanto a determinado grupo/facção/NPC poderoso, podendo valer-lhes inimigos no futuro:

Número de Fracassos
Resultado
1 O personagem/grupo passa a ser reconhecido na área como alguém que fez uma burrada; algo não tão importante, mas que traz olhares reprovadores e quem sabe, um pouco de hostilidade em negociações futuras (considere -2 de penalidade para testes envolvendo os sujeitos do DdP; em casos onde os personagens não estejam agindo contra um grupo ativo, jogue 1D6 ao início de encontros sociais: em um resultado 1, os NPC’s da cena reconhecem os heróis por sua má fama).
Exemplo: Ao tentar decifrar um tomo antiguíssimo da Biblioteca dos Aestetas de Krunn (objetivo: decifrar um ritual antigo; falha: o livro é destruído, mas os heróis conseguem o ritual de qualquer maneira), o mago do grupo (com ajuda de seus comparsas de aventura) conseguiu três falhas, sendo uma delas uma falha crítica (fuuuumble, grita o azarado jogador): O Desafio consistiu em convencer os monges de uma biblioteca a deixar os heróis pesquisarem tomos antigos; após os primeiros sucessos (que garantem a entrada do grupo nos andares proibidos da biblioteca e permitem encontrar o tomo em si), os heróis passam para a segunda parte do DdP: Decifrar o tomo. Ao descobrir páginas ocultas entre as folhas do tomo, o desastrado mago rasgou algumas páginas para conseguir atingir seu objetivo. Como resultado, além de uma rixa com um grupo de monges, os heróis acabam inadvertidamente perdendo parte do conteúdo do ritual, fazendo com que o nível do desafio durante a cena em que utilizam o ritual seja um pouco maior.
2 O personagem/grupo consegue inimigos – além do famigerado DdP que em caso de derrota acaba em combate, isso significa um grupo de inimigos dedicados a atordoar a vida dos heróis. Mantendo o espírito de aleatoriedade (e roubando discretamente uma regra do GURPS), jogue 1D6 ao início de cada encontro: um resultado 1 significa que o inimigo aparece, e tenta atrapalhar o grupo de alguma forma.
Exemplo: Ao tentar encontrar o culpado de um crime, os heróis fazem as perguntas erradas na taverna errada: eles tanto erram a taverna (primeira parte do DdP) quanto conseguem passar a pior impressão possível a seus suspeitos freqüentadores (falhas em testes de Diplomacia, Intimidação, e outras perícias sociais). Talvez o encontro termine em combate, mas uma coisa é certa: o grupo que contratou o criminoso agora quer pegar os heróis.
3 O personagem/grupo comete uma ofensa grave – além do famigerado DdP que em caso de derrota acaba em combate, isso significa um grupo de inimigos dedicados a atordoar a vida dos heróis. Jogue 1D6 ao início de cada encontro: um resultado 1 ou 2 significa que o inimigo aparece, e tenta atrapalhar o grupo de alguma forma. Ademais, o grupo passa a ser reconhecido em 1-2 em 6 chances (1-2 em 1D6) como geradores de tal ofensa, recebendo -4 de penalidade em testes sociais.
 

Exemplo: Uma negociação com o chefe das tribos de elfos selvagens termina após os heróis falharem miseravelmente em seus testes sociais / físicos. O bárbaro passou a noite vomitando a infusão dos elfos, após tentar provar que poderia beber a bebida do agreste feérico; o clérigo infelizmente lembrou da história errada sobre a deusa da caçada (era justamente a história do Dia da Vergonha dos Elfos da Noite), e o eladrin mago do grupo mostrou todo seu desdém com seus parentes “inferiores” ao tentar ensinar algo sobre sua cultura. Agora, além de um combate de honra contra os campeões das tribos, o grupo passa a ser marginalizado e muitas vezes atacado ao lidar com as tribos selvagens, e quem sabe, com elfos de outros lugares que ouviram falar da “façanha” dos heróis.

Regra Opcional Esquecida: Os jogadores determinam a dificuldade (Grandes Riscos, Grandes Feitos):

Uma das regras estranhamente jogadas fora durante o processo de desenvolvimento da quarta edição envolvia o assunto deste artigo: os heróis podiam escolher contra dificuldade iriam testar sua perícia contra, assumindo grandes riscos mas podendo obter grandes recompensas, ou apenas utilizando a dificuldade mediana sem receber grande vantagem. Neste caso, todo DdP se torna um pouco mais complexo para o mestre, mas garante ao jogador a oportunidade de realizar atos realmente heróicos. Nestes casos, uma perícia cuja CD seja compatível com o nível dos personagens se torna difícil, e uma difícil (usualmente uma perícia sendo usada pela segunda vez no mesmo DdP) tem sua dificuldade aumentada em 2. As recompensas são maiores: o teste pode valer por dois sucessos, ou garantir acesso a uma recompensa especial (seja tesouro, ajuda futura durante a aventura ou reputação); em contrapartida, falha significa a perda de um pulso de cura, ou conta como 2 derrotas no DdP, ou perda de recursos compatíveis com o nível do desafio.

nota: fumble, ou numa tradução literal, “inépcia” (trapalhada), é o que os comentaristas de futebol americano gritam quando um jogador consegue perder uma jogada certa ou se atrapalha todo, geralmente caindo sozinho. É contagiante gritar isso cada vez que um jogador (ou NPC) tira “1” e geralmente faz algo desastroso, e que não raro, rende gargalhadas em momentos inoportunos.

Por Leonardo Gruber

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5 Comments
  1. Muito interessante, tenho que portar minha mesa para d&d4

  2. Eu entendi a coisa toda mas não estava sabendo desta parte aqui:

    Em outros tópicos, menos intensos quanto às regras, mas mais voltados para o jogo em si, a edição atual se tornou mais parecida com as versões ancestrais de D&D – classes marciais perderam o poder diário em função de manobras de encontro, deixando espaço para os usuários de magia arcana e divina utilizarem este tipo de poder como na velha tradição Vanciana (onde um mago “esquece” automaticamente a magia memorizada quando a utiliza).

    Isso é coisa dos Essentials?

  3. Achei muito interessante as observações sobre os DdP, porem a perda de itens mágicos não me pareceu interessante… mas é minha opinião.

    De restante, devo usar todo o material na minha próxima sessão…

  4. @Jeff, O Druida Metamorfo: valeu! D&D 4th tem seus prós e contras, o melhor (creio eu) é tratar como um jogo diferente, mas baseado nos elementos clássicos do D&D.

    @Cursed Lich: exactamente! Na verdade talvez eu tenha me expressado mal: são só as builds de Essentials que possuem estas características. O resto das builds antigas continua intocado (até onde eu vi)! Valeu!

    @Guzzon: valeu! Na verdade eu usei o corte de itens mágicos mais pq eles acabam sobrando (pelo menos no meu grupo) e pq em algumas situações as coisas simplesmente se perdem no pânico! Mais uma vez, obrigado!

  5. Gostei da matéria. Agora os jogadores vão se dedicar mais aos DdP.

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