Arquivo REDERPG: Jogando Cyberpunk

Jogando Cyberpunk é um excelente artigo escrito pela saudosa Língua de Espinhos e publicado no antigo portal em 14 de novembro de 2003 (2.052 leituras). Este é um artigo que todo Mestre de Jogo deveria ler, não apenas os amantes de RPGs de ficção científica e do gênero cyberpunk, porque suas dicas servem também para outros gêneros. Confiram a seguir.


 

Jogando Cyberpunk :

Algumas coisas simples que podem fazer sua campanha cyberpunk mais atraente

Pra começar eu queria dizer que esse texto é relativamente antigo (2000) e que não contém nada que um mestre experiente não saiba. Na verdade ele é 90% baseado em bom senso, mas acredito que ele venha a ajudar alguns pobres perdidos. Também está bastante orientado para Shadowrun, mas nada impede que suas idéias sejam utilizadas em outros jogos do tipo. O artigo também teve algumas partes adicionadas e ficou sem outras mais hã… Pesadas e talvez desnecessárias…

Sempre fui interessada pelo gênero cyberpunk – na verdade antes mesmo de me interessar pelos RPGs – principalmente devido aos clássicos Blade Runner e Akira, embora pouco tenha jogado/mestrado coisas do tipo.

O caso é o seguinte: um belo dia eu me sentei para simplesmente assistir uma partida de Shadowrun na casa de um amigo. Muito embora fossem todos jogadores com pelo menos 10 anos de escola, a coisa toda andava meio como um clichê: invada a corporação, pegue os dados, escape, ganhe a grana, seja traído, etc. Apesar de tudo a trama era até interessante, mas o cenário e os personagens não ganhavam cor. Acabei perguntando porque ninguém procurava família, amigos, etc, me responderam: “Somos shadowrunners! A gente não tem passado, foi tudo apagado…”.

Ai, ai…

Tudo bem, se é esse o estilo deles jogarem não sou eu quem vai dizer que estão errados, afinal de contas diversão é o que conta no final. Só que isso não justifica deixar de lado toda o potencial de uma ambientação. Esse artigo é uma tentativa de orientar jogadores e, principalmente, mestres a aproveitar coisas simples e rotineiras que podem dar muito mais vida a uma história cyberpunk.

.:: Esteja certo de que os personagens tenham um histórico bem elaborado

Então quer dizer que todos os shadowrunners têm seus passados apagados, certo? Só mesmo um mestre bem estúpido pra permitir esse tipo de desculpa como um background. Mesmo descartando família – até porque é muito difícil ter alguma coisa como uma família tradicional na Seattle de 2065 – ainda existe muita coisa que deve fazer parte do histórico de um personagem.

Pensemos que se ele não for um novato completo no “ramo”, provavelmente terá feito um ou outro “servicinho”. A questão é que esses “servicinhos” geralmente atraem coisas como inimigos, aliados, contatos, sem falar na reputação que precede o nome. Personagens de uma mesma campanha já podem ter agido juntos em alguns desses trabalhos anteriores, ou pelo menos saber de algo a respeito.

Force o jogador a explicar tudinho que está na ficha. Sabia quem foi o médico que colocou o bioeletrônicos, de onde vem aquele monte de dinheiro, como conseguiu os feitiços, como aprendeu as habilidades, como conheceu seus contatos, etc.

Agora, onde diabos estão os pais – ou equivalente pós-moderno – do personagem? Claro, se ele não nasceu sozinho (clonado?), deve ter tido uma mãe (o pai geralmente é mais complicado de achar…). Em geral, nos jogos cyberpunk, os personagens são pessoas abandonadas ou desprezadas pela família, mas isso nunca deve se tornar uma regra. Se esses familiares existem, trate de estabelecer linhas gerais de quem eles são e, principalmente, o quanto eles participam da vida do seu personagem. Isso pode ser uma fonte para idéias e situações bem melhores do que chantagens com reféns e assassinatos para fazer histórias de vingança – não que isso não tenha o seu lugar, mas é óbvio demais. Talvez o personagem tenha aprendido tudo o que sabe com algum parente, ou seja, filho de um executivo/agenciador de mercenários/traficante de armas. Procure saber também quem são as pessoas com quem os personagens sempre tiveram mais contato: amigos, aliados, inimigos, amantes, filhos, etc.

Não deixe que esses detalhes passem batidos, vá preenchendo-os com o tempo. Tanto no manual do Shadowrun quanto no do Cyberpunk 2020 existem questionários sobre o personagem que não só devem ser respondidos, mas também trazidos à vida. O passado é sempre um excelente gancho para histórias.

.:: Explore o cotidiano e a vida privada

O que os personagens fazem quando não estão em um shadowrun? Se você respondeu que estão fugindo do Mr. Johnson ou escondendo em alguma toca fedorenta em Puyallup talvez esteja certo, mas a vida de ninguém pode se resumir a isso.

Como seu personagem se diverte? Assiste sensoramas pornográficos baratos? Vai a bares, casas noturnas? Bebe? Usa drogas? Joga videogames? O que ele gosta de comer? Como gosta de passar o tempo com parentes, amigos e amantes? Responder perguntas desse tipo define muito da parte íntima de um personagem, especialmente quando são somadas ao estilo de vida (leia-se: $$$) que ele possui.

Tente fazer o jogador sentir que esses momentos entre missões também são divertidos. Nem todos os problemas na vida de um personagem vão estar resumidos a suas “relações de trabalho”. Talvez o “pobre” samurai-urbano Anônimo esteja com um infernal advogado em seus calcanhares exigindo uma gorda pensão para sua ex-mulher e filhos. Infelizmente (ou felizmente) puxar o gatilho de uma Uzi III pode não ser a melhor forma de resolver um problema (será?). Acredite, coisas desse tipo podem ser uma dor de cabeça maior do que um esquadrão de mercenários da Ares contratados pra te caçar.

Faça com que os PCs interajam entre si e use aspectos definidos no histórico para fazer as interações mais interessantes e coerentes. A vida de um personagem rico pode ser confortável e enfadonha, ao passo que a vida das ruas pode ser excitante e perigosa (para quem quer ter noção da vida nas ruas de uma autêntica e bem retratada metrópole cyberpunk, recomendo o conto Diário da Rosa na ShadowlandBR http://www.shadowlandbr.hpg.com.br).

Force os jogadores a responder porque seus personagens estão nessa vida. Fazer shadowruns é bastante perigoso e promete uma vida segura e longa para muito poucos. É essencial saber a resposta para essa pergunta para entender que tido de serviço ele vai topar e o que vai fazer com o que receber em troca. Alguém que “trabalha” nas ruas para pagar as contas é tão shadowrunner quanto alguém que o faz por alguma espécie de idealismo. Além disso, se o foco de uma campanha for simplesmente um “serviço” atrás de outro, cedo ou tarde os personagens vão se cansar. A história toda tem que fluir independente de coisas como missões, até porque as motivações dos personagens cedo ou tarde vão levá-los a seguir outros caminhos.


.:: Faça o Metroplexo se mexer

Os jogadores têm que sentir a essência do clima cyberpunk, mas você deve ter sempre algo mais em mente. Cidades imensas, cinzentas, inescrupulosas e poluídas são apenas a casca: o que há dentro delas?

Na excelente Transmetropolitan de Warren Ellis, a cidade é mostrada como um berço muito diversificado de culturas urbanas, novas religiões e raças (!) que surgem a todo momento.

Pense em quantas “tribos” cosmopolitas temos hoje? Headbangers, punks, clubbers, hippies, skinheads, patricinhas, góticos, otakus, skatistas… Enfim. Agora some isso com cidades ainda maiores, modificações corporais avançadas e acessíveis, bioeletrônicos, magia (em Shadowrun isso adiciona MUITAS possibilidades de novas religiões), engenharia genética e matrizes onde pode-se fazer uma simulação quase perfeita da realidade. Promissor, não?

É essencial aprender o que é viver numa montanha de concreto e asfalto burocrática, venenosa e engarrafada (claro que, quem vive em São Paulo já sabe…). Leve-os à loucura por nunca conseguirem chegar em lugar nenhum na hora certa por causa do trânsito, assalte-os, roube-os, jogue esgoto e lixo em cima deles. Coloque brigas de gangues, revoltas de operários e atos pró meta-humanos em seu caminho. Deixe que sintam que o chão em que pisam é faminto e pode engoli-los a qualquer momento.

Tente diferenciar as várias partes do Metroplexo. As favelas de Puyallup e Redmond terão um clima totalmente diferente da sofisticada Arcologia Renraku, e isso deve ir muito além de violência e dinheiro simplesmente. Deve refletir no próprio modo como o poder (legal e ilegal) se exerce e em como as pessoas se apropriam do espaço à sua volta para morar, se divertir ou transitar. Você também pode aproveitar para pensar em como toda a tecnologia disponível realmente afetou a vida das pessoas além de simplesmente dizer que concedeu super reflexos pra uns e outros.

Não se esqueça de que a mídia (impressa, eletrônica, etc) também está ao seu favor na hora de dar cor ao cenário. Programas de auditório, superproduções, desenhos animados, comerciais, noticiários no sensorama podem acabar dando personalidade a esse aspecto do cenário freqüentemente ignorado (“Anthrax Cat volta depois dos nossos comerciais. Não saiam daí crianças!”). A Matriz é muito mais que um meio de se invadir a corporação Aztecnology, é também um meio se pode encontrar informações diferenciadas, controlar algo remotamente, se corresponder e comunicar on-line com pessoas. Idoru, de William Gibson, mostra uma rede de computadores (e um conceito de computadores) muito interessante para se entender melhor como se processaria a informática do futuro cyberpunk.

Pense também nas celebridades. Afinal de contas elas são uma parte muito importante na cultura do espetáculo. Podem ser personagens fictícios (espero que ninguém duvide que o Garfield, Jeca Tatu e o Batman são espécies de celebridades) ou pessoas de carne e osso (algumas vezes com partes metálicas). Com os adendos da modificação corporal e engenharia genética, o aspecto de celebridade pode tomar dimensões dramáticas. Supermodelos cujos clones são vendidos no mercado negro como escravas sexuais ou pelo menos um milhão de pessoas com a mesma cara daquele ator famoso – traços particulares podem ser uma questão de copyright! Dê às suas celebridades nome, personalidade e ocupação. Elas podem ser milionários, estrelas do sensorama, políticos, esportistas e até shadowrunners. (Mas não se esqueça das pessoas comuns! Maneirismos de mendigos, aparências de secretárias, conversas com lojistas podem render bastante também).

E se a sociedade cyberpunk continua sendo uma sociedade de consumo trate de dar personalidade também ao que os personagens consomem (“Long Pig: carne humana clonada a preços que qualquer um pode pagar!” ou “Body Suit Adidas: suor, nunca mais!). Dê cara a feiras livres (provavelmente o único lugar onde se pode conseguir vegetais, comida caseira, artesanato, etc), clubes noturnos (contatos, amantes, drogas, música, artistas), lojas de departamentos (“Defenda-se! Ares Predator com 20% de desconto! Apenas hoje!”), prédios, postos de combustível, bazares e tudo mais.

Pra finalizar, escreva um resumo falando sobre as áreas que os personagens mais freqüentam: descrição geral, locais de interesse, NPCs, segredos, etc.


.:: Lembre-se de que as corporações vendem a SUA mãe se isso der lucro

Corporações são a maior força em um cenário cyberpunk – afinal de contas o próprio conceito de cyberpunk envolve o fato do Estado ter abandonado a sociedade em favor das grandes empresas. Elas representam o cúmulo da falta de escrúpulos. A uma corporação interessa o lucro, e ela usará de todo e qualquer meio para consegui-lo. Também são um fator político, uma vez que permeiam o Estado e têm muito controle sobre a vida dos cidadãos.

Para se ter uma idéia de como funcionam as corporações em um mundo cyberpunk não é preciso ir muito longe, basta olhar para as que atuam no nosso mundo. Exagero? A Shell sofre processos por ter mandando torturar e matar dois ecologistas nigerianos. A Nike tirou todas suas fábricas dos EUA (com exceção de uma) em favor de países onde as pessoas trabalham por menos e as leis trabalhistas são menos eficientes (Laos, Indonésia, Camboja, etc), e compra de fornecedores nesses países que empregam mão-de-obra escrava. O grupo Gessy-Lever é dono de 90% das marcas de produtos de limpeza no Brasil (pois é, Gillette, Sorriso, Colgate, Palmolive, Omo, Ariel e outros…) além de produtos alimentícios (ex: Cica). Isso sem contar com as redes de supermercados multinacionais que praticamente monopolizam algumas cidades fingindo fazer concorrência entre si. Isso, pra não mencionar a Microsoft.

Entender a força corporativa também envolve perceber a maquiagem que a cerca (“Gosto é viver. Nuka Cola!”), e que não haja dúvidas de que as corporações usarão a mídia a seu favor. Empresas como a Ares vão se apoiar no lobby armamentista em prol da defesa própria (A Colt faz isso nos Estados Unidos, mas suas armas chegam em larga escala nas guerrilhas da Colômbia, Libéria, Serra Leoa e nos morros do Rio de Janeiro). Empresas farmacêuticas vão esconder efeitos adversos e ineficiência de seus medicamentos. Fabricantes de bioeletrônicos e empresas de escultura corporal vão fazer exatamente como as empresas de cosméticos: lançar padrões de beleza fora do alcance de qualquer mortal buscando aumentar suas vendas.

Claro que, como um mundo cyberpunk não é lugar para mocinhos, os personagens aproveitarão essas deixas em benefício. Certamente nossos amigos executivos precisarão de alguém para fazer uns serviços de espionagem industrial, invasão via Matriz, extorsão, tortura, assassinato, roubo, lavagem cerebral, etc. Agora, sempre tenha em mente que nenhum Mr. Johnson (alcunha genérica do contratador de shadowruns) vai hesitar em eliminar os personagens caso façam alguma besteira, ou caso ele simplesmente considere cômodo. As corporações não querem os shadowrunners pelo seu poder de fogo (elas têm seus próprios exércitos), elas os querem pelo subterfúgio, pelo anonimato. Isso faz com que os personagens valham menos que excremento de ghoul aos olhos das corporações.


.:: Não se prenda pelo óbvio

Acima de tudo lembre-se de que os livros do seu jogo cyberpunk são apenas referência pura e simples. Histórias muito excitantes podem ser jogadas sem que missões estejam envolvidas, focando personagens que fogem do estereótipo de shadowrunner ou street op. O mangá Akira e o romance Idoru são exemplos disso: no primeiro os protagonistas são estudantes rebeldes que se envolvem em brigas de gangues por diversão, já no segundo são uma adolescente comum e um funcionário de uma “empresa de talentos”.

Outra boa fonte de inspiração é o já citado Transmetropolitan, história em quadrinhos do selo Vertigo. Nela o jornalista Spider Jerusalem anda por aí cobrindo escândalos políticos, escrevendo a coluna mais gonzo de todos os tempos e ganhando um bocado de dinheiro e ameaças de morte por isso. Histórias cyberpunk podem ter pura e simplesmente interesses pessoais envolvidos e ainda serem muito mais interessantes do que as “de contrato”.

Ficamos por aqui.


Referências úteis:

Coisas descaradamente cyberpunk
  • Quadrinhos:
Akira – grande visual, ótimo roteiro. Meu favorito!Transmetropolitan – muito humor negro e personagens absurdamente carismáticos.

Dirty Pair – sem comentários…

Ghost in the Shell – um desperdício divertido de idéias boas sobre andróides.

  • Filmes/Desenhos:
Akira – muito resumido em relação ao mangá, mesmo assim vale à pena.Blade Runner – clássico dos clássicos!

Ghost in the Shell – mais profundo e rico que o quadrinho.

Robocop – vocês não acham que a OCP é demais?

Johnny Menmonic – Keannu Reaves atuando igual a um robozinho…

  • Livros:
Neuromancer – melhor aproveitar a edição nova!Idoru – muito criativo e muito útil pra quem gosta de cyberspace.

Piratas de dados – outro clássico.

Do androids dream of eletric ship? – nunca li, mas promete.

  • RPGs:
GURPS Cyberpunk – livro fraco, mas com algo que vale a pena.Cyberpunk 2020 – tem uma ambientação cativante e regras pedantes.

Shadowrun – a história do cenário é uma meleca, mas o resultado parece agradável.

SLA – coisa fina. Se encontrar um exemplar, agarre e saia correndo.

  • Internet:
Shadowlandbr – uma boa página nacional sobre Shadowrun.
Coisas que não são cyberpunk, mas ajudam
  • Quadrinhos:
Sin City – é bastante exagerado, mas uma ótima inspiração para violência.V de Vingança – uma boa idéia do que é um Estado de controle.
  • Filmes/Desenhos:
Laranja Mecânica – se não tem a parte cyber, a punk é impecável.Cowboy Bebop – seu estilo está mais para um cybernoir, mas ainda conta.

Alien : o oitavo passageiro – porque que o espaço cyberpunk não é Star Trek.

Os doze macacos – visual impecável! Bruce Willis não é uma gracinha?

Amores Brutos – só a primeira e a última histórias. Estética da pobreza.

Cidade de Deus – Puayllup nunca pareceu um lugar tão bom…

Metropolis – o filme, não o anime.

Tiros em Columbine – afinal de contas uma vez Amerikkka, sempre Amerikkka.

  • Livros:
Laranja mecânica – mais punk do que nunca…1984 – Big brother is watching you.

Admirável Mundo Novo – drogas e sexo como formas de controle.

  • Internet:

Centro de Mídia Independente – safadezas dos governos e corporações… Do mundo real.

Por Língua de Espinhos (*)
Cedido à REDERPG
(*) Língua-de-Espinhos fez carreira meteórica como shadowrunner a serviço da Hasbro Inc. matando jovens autores de sistemas concorrentes do D&D.. Ela pode ser vista fazendo drama e produzindo literatura barata enquanto limpa sua Ares Predator II no site ::treze:: http://www.treze13treze.hpg.com.br .


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2 Comments
  1. Excelente matéria! Acompanho o REDE RPG como observador tem algum tempo e acabei de criar meu login só para falar que foi o melhor texto que vi esse ano nesse fórum…..estão de parabéns!

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