Lady Blackbird (resenha)

Uma das ideias por trás da criação de sistemas genéricos, como GURPS, BRP e até o Sistema d20, é que aprender um novo conjunto de regras para cada cenário ou gênero seria um trabalho desnecessário. Esse tipo de sistema, que há cerca de dez anos parecia tender a dominar o mercado, não é hoje tão onipresente (embora tenham conquistado seguidores fiéis e um espaço cativo). Duas das razões pra isso são os rpgistas que consideram aprender novos sistemas como um prazer ao invés de uma tarefa árdua, e os designers de RPG que preferem desenvolver suas ideias em um ambiente mais focado do que “todos os gêneros e todos os cenários”, mesmo que elas tenham o potencial para ser adaptadas para usos mais amplos.

Lady Blackbird (disponível em http://www.onesevendesign.com/ladyblackbird/) se insere nessa filosofia – é uma aventura gratuita com um sistema próprio. O PDF tem apenas 16 páginas, e a maior parte delas é ocupada por planilhas dos personagens, cada uma com um resumo idêntico das regras, de forma que o material “não repetido” representa cerca de 8 páginas ou menos (há “planilhas avançadas” sem novas informações).

A aventura, de uma página, trata de Lady Blackbird, uma dama que, fugindo de um casamento arranjado, compra passagem num sky ship (um navio aéreo, ilustrado como algo que parece uma mistura de um avião antigo com um submarino voador) comandado por um mercenário renegado, para chegar ao seu amante, um rei pirata. No meio do caminho, o navio, suspeito de voar sob uma bandeira falsa, é interceptados por um cruzador imperial (George Lucas é citado nas influências do jogo) , e fica evidente que eventualmente  o capitão mercenário vai ser descoberto. A aventura é basicamente isso, o resto fica a cargo do GM e dos jogadores.

O cenário, também descrito em uma página, se insere nos gêneros steampunk e alta fantasia. Os mundos do Azul Selvagem giram em torno de uma pequena e fria estrela, supostamente formada de pura Essência, a matéria-prima da magia. Toda a extensão desse sistema solar pode ser atravessada em seis semanas num sky ship, e o ar dentro do sistema é respirável, embora as “profundezas” sob o “céu” seja composta de uma perigosa névoa corrosiva. O mundos são divididos basicamente entre um império escravagista, povos livres e piratas. Não há grandes novidades aqui, salvo a estranhas leis da física, que não vão agradar a todos – seria possível transformar o Azul selvagem num só planeta gasoso, ganhando verossimilhança mas perdendo originalidade.

Em seguida, vem as planilhas dos personagens, com as regras do sistema, que é bastante simples e elegante.

Os personagens são formados por traits, tags, keys e secrets. Traits são bastante amplos, podendo representar qualquer tipo de habilidade ou vantagem, como Nobre Imperial, Guerreiro, Esperto, Goblin e assim por diante – algo como os clichês de RISUS. Cada trait tem algumas especialidades (tags); o trait Guerreiro tem tags como espada e pistolas, enquanto Nobre Imperial tem conexões e etiqueta.

Quando o personagem encontra um obstáculo, deve rolar alguns dados de 6 faces e pra tentar atingir um número de acertos estabelecido pelo GM (de 2 para obstáculos fáceis a 5 para dificuldades extremas). Cada dado com resultado de 4 ou maior é considerado um acerto. O número de dados a ser rolado é igual a um, mais um se o personagem tiver uma trait aplicável, e mais um se tiver também uma tag adequada, mais quantos dados o jogador quiser acrescentar de sua pilha de dados, que começa em 7 dados. Se o personagem tiver sucesso, os dados da pilha são perdidos. Cada contrário, o personagem sofre alguma complicação definida pelo GM (inclusive conditions, como “ferido”, “perdido” ou até “morto”, mas a morte só ocorre se o jogador quiser – caso contrário ele é apenas “presumido morto”), mas o jogador mantém os dados da pilha e acrescenta mais um.

Keys são desvantagens ou objetivos, como Ganância, Vingança, ou uma Missão, que, quando ativadas nas ocasiões previstas – a key de Ganância, por exemplo, é ativada quando o PC rouba algo – dando ao jogador a chance de ganhar pontos de experiência ou mais dados para sua pilha. Os pontos de experiência servem para ganhar avanços, e cada avanço pode ser trocado por um novo trait, tag, key ou secrets. Os jogadores também podem recomprar suas keys, ganhando dois avanços, ao agir de maneira contrária a ela – por exemplo, ao perdoar um inimigo, a key de Vingança pode ser trocada por dois avanços. Escolher entre dados (temporários) e experiência (permanente) me pareceu uma má ideia, que pune jogadores que gastam muitos dados (às vezes em benefício do grupo ou da história), e poderia acabar com o equilíbrio entre os personagens depois de algumas seções.

Secrets são pequenas vantagens, como as feats de D&D, que podem ser usadas para fins bem específicos. O secret do Guarda-costas, por exemplo, permite uma nova rolagem de dados uma vez por sessão quando o personagem falha ao proteger alguém; outros secrets permitem teleportes, quebrar objetos duros com as mãos vazias, ou mudar suas características físicas. O nome “secrets” é uma escolha estranha, pois os secrets não são segredos – aliás, o segredo mais importante da aventura é a identidade secreta de Lady Blackbird, que é uma key, não um secret.

As planilhas servem não só pra apresentar os cinco personagens sugeridos para a aventura, mas também para exemplificar traits, tags, keys e secrets. As keys desses personagens foram escolhidas de forma a maximizar as oportunidades de drama e interpretação, muitos vezes sendo divergentes ou mesmo contrapostas às keys dos outros personagens e aos objetivos da aventura – um dos pontos altos do RPG.

O PDF ainda traz conselhos para o GM (meia página), e recomenda que ele não planeje as aventuras, mas faça perguntas aos jogadores, gerando uma narrativa mais compartilhada – coisas como “Você sabe algumas coisa sobre os rebeldes? Como eles são?” ou “Quando você faz isso, alguma coisa à sua volta se quebra?”. O GM deve incorporar as respostas dos personagens à história e criar obstáculos interessantes (o PDF traz alguns exemplos – mais meia página).

As regras são esparsas (não há regras específicas para conflitos, por exemplo), e podem exigir uma dose de esforço para um GM inexperiente. Evidentemente, o enfoque é a narrativa, sem muito espaço para realismo – um personagem que guarde muitos dados poderá vencer com facilidade obstáculos significativos sem ter nenhuma habilidade para isso. Esse tipo de mecânica, por outro lado, possibilita que os jogadores tenham sucesso quando isso realmente importa para eles, e dá ensejo a uma alternância constante entre vitórias e derrotas.

O jogo, em suma, é um excelente exercício de minimalismo. A aventura é um tanto genérica e curta, e o cenário é apenas interessante, mas a construção de personagens é engenhosa, e o sistema incorpora, num espaço exíguo, algumas das melhores ideias dos RPGs modernos – podendo ser facilmente adaptado para outros cenários. Para quem ainda tem dúvidas de que conhecer novos sistemas de RPG pode ser muito divertido, Lady Blackbird é uma ótima resposta.

 

Notas (de 1 a 6)
Texto: 5.
A clareza e concisão do texto possibilitaram que as regras fossem escritas em meia página, e as demais informações são igualmente sucintas.
Conteúdo: 5. Incorpora ótimas ideias de dos chamados RPGs “alternativos” num sistema simples e eficiente.
Arte/layout: 4. O layout é limpo, bonito e agradável, assim como a arte. Algumas repetições poderiam ser evitadas.
Nota Final: 5.

Por Erik Drake

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