Livro do Jogador de D&D 4ª Edição (resenha)

Após quase um ano do lançamento dos três livros básicos da 4ª Edição de Dungeons & Dragons em inglês, a Devir lançou em português o Livro do Jogador de D&D 4ª Edição. Conforme dito na resenha da aventura Fortaleza no Pendor das Sombras, todas as resenhas dos produtos do novo D&D em português publicadas aqui no portal também abordarão as edições originais, além do trabalho feito pela Devir. A editora paulista também já lançou o Manual dos Monstros (que também terá sua resenha aqui na REDE em breve), e acabou de lançar o Guia do Mestre agora em setembro.

Desde o seu anúncio, a nova edição de D&D tem gerado muita expectativa e polêmica, principalmente conforme amostras dela foram sendo disponibilizadas pela Wizards em seu site oficial (e traduzidas aqui por nossa equipe). Bem, chegou o momento de conferir quem tem razão, se seus críticos ou os seus defensores.

LdJO projeto gráfico da nova edição é leve e “clean”, o qual aliado ao uso de uma fonte com tamanho maior torna a leitura dos livros do novo D&D mais amigável. Ainda mais que a clareza e a qualidade do texto são muito superiores aos da 3ª Edição. Aliás, conforme já dito por outros, os três livros básicos da 4ª Edição são provavelmente os manuais de regras de leitura mais fácil e agradável já feitos na história do RPG. Em suma, trocou-se o luxo do projeto gráfico da edição anterior por uma maior funcionalidade, e de quebra um texto mais fluido e agradável de ler.

De um modo geral, a arte manteve o padrão de qualidade da edição anterior, como a imagem da capa com uma humana e um draconato. Algumas ilustrações não são tão boas, mas outras, como a clériga de Sehanine da página 258, são excelentes. Há uma leve mudança de estilo na arte, deixando-a mais próxima aos games e MMORPGs (Massive Multiplayer Online RPG, os RPGs online para múltiplos jogadores) de fantasia atuais.

A edição em português da Devir manteve tudo isso e a mesma qualidade de produção, mas com uma diagramação melhor e mais esmerada do que a diagramação mais simples da edição original da Wizards, além de incluir a errata da edição americana no texto. De negativo, a versão da Devir apresenta uma quantidade considerável de erros de revisão.

E a tradução dos termos oficiais?

Provavelmente é impossível algum tradutor ou editor conseguir agradar a maior parte dos jogadores brasileiros e muito menos a todos na escolha dos termos. Porque uma parcela significativa dos nossos jogadores usa o material original em inglês e vai estranhar a tradução, qualquer que seja ela, infelizmente. Por mais precisa e correta que ela esteja em seu significado e conceito. Porque cada jogador prefere um ou outro termo e acha uma “heresia” qualquer um que não seja o de sua preferência. O público do nosso hobby também tem os seus defeitos.

Por exemplo, patrulheiro é a tradução correta de ranger, em todos os sentidos e aspectos. Não fazia o menor sentido todas as classes serem traduzidas e o ranger não. Mas ainda assim muita gente reclamou e boa parte queria que se mantivesse o termo ranger. Nesses momentos, uma decisão técnica deve prevalecer, mesmo que desagrade a muitos.

Contudo, algumas escolhas poderiam ter sido melhores. Por exemplo, traduzir minor action como ação mínima ao invés de ação menor não foi uma escolha tecnicamente precisa, visto que existem as ações livres, que são as ações de duração mais curta em uma rodada.

Além disso, alguns termos podem realmente soar um tanto “estranhos” no nosso idioma. Por exemplo, um ladino usar sua ação de movimento para fazer uma acrobacia deslumbrante, para em seguida realizar o ataque recuo da cobra e depois receber o benefício da tocha da cura do clérigo, talvez vá causar risadas em algumas mesas. Sem preconceito, é claro. Mas por melhor que seja o tradutor, sempre haverá um limite para o que ele pode fazer. E nós somos brasileiros, e fazer piada de tudo é parte inerente de nossa natureza. Então, vamos dar um desconto para as escolhas dos termos feitas pela Devir.

Um Passo Mais Adiante

A 4ª Edição não é uma nova versão da 3ª: ela é um novo sistema. E isso já foi dito várias vezes. O que não foi dito ainda de forma bem clara, é que a 4ª Edição é um novo sistema em relação à 3ª, assim como a 3ª Edição foi um novo sistema em relação ao velho AD&D.

Vocês vão encontrar uma parte considerável dos termos e nomes em comum. A diferença é que a 4ª Edição ousou mudar mais do que a 3ª Edição em relação ao AD&D, e criou um conjunto de regras mais enxuto, funcional, com excelente jogabilidade, divertido e, principalmente, sem os “bugs” que a 3ª Edição tinha. As mudanças deram um passo mais adiante.

E por quê?

Independente dos motivos mercadológicos e interesses da Wizards, a grande verdade é que – para o mercado americano – o agora velho Sistema d20 já tinha dado tudo que podia dar, além de ser um sistema com problemas de mecânica. Era necessário um novo sistema de jogo, que conseguisse trazer para o hobby uma nova geração de jogadores, que foi criada pelos games eletrônicos e MMORPGs.

Receios Infundados

O novo Dungeons & Dragons mandou para o matadouro toda uma manada de “vacas sagradas”: elementos do sistema de jogo considerados intocáveis, ao menos até então. Tudo em prol de um sistema mais funcional e ágil. Por exemplo, muita gente se assustou e torceu o nariz (inclusive eu) quando soube que mísseis mágicos agora teriam jogada de ataque em vez de acerto automático. Pois bem, esqueçam como era antes, os conceitos e o paradigma de sistema agora são outros. Seu mago na 4ª Edição não é um deficiente físico que não consegue acertar nada, e não há mais nenhum poder com acerto automático. Mísseis mágicos agora são um poder sem limite de uso e também funcionam como ataque básico à distância (pouquíssimos poderes podem funcionar como ataque básico). Ainda tem dúvidas?

Experimente e jogue.

Em todos os encontros de RPG, cada vez mais jogadores têm migrado para a nova edição. Jogadores novos, jogadores experientes, jogadores que não gostavam de alguma das edições anteriores de D&D, e amantes da 3ª Edição, que assim como eu romperam com os preconceitos em relação ao novo D&D.

Particularmente, meu principal “pé atrás” com a 4ª Edição era o fim das classes de prestígio. Eu penso que as classes de prestígio foi o aspecto mais genial da 3ª Edição. Para mim, elas deram o diferencial que fez a 3ª Edição mais interessante do que os sistemas de que usam pontos para a criação de personagens (e que eu achava mais interessantes que o arcaico AD&D). Mas após jogar o novo D&D posso afirmar com total convicção: não sinto saudades delas. Aquela customização, variedade e individualização que elas concediam aos personagens, as classes básicas da 4ª Edição possuem desde o 1º nível. E, de quebra, no 11º nível temos as trilhas exemplares, que diferenciam ainda mais os personagens, sem falar nos destinos épicos, a partir do 21º nível.

Ou seja, conforme vai se jogando, os receios sobre a nova edição vão se tornando infundados.

O Novo Sistema

O novo sistema em si tem como base três princípios fundamentais, escritos logo no início do livro:

1) Regras Simples, Muitas Exceções
2) Específico contra Geral
3) Arredonde Sempre para Baixo

A mecânica básica também está lá, com os mesmos três princípios da 3ª Edição, mas tudo ficou mais simples, mais fácil e mais ágil, e mantendo ou mesmo aumentando a variedade de opções: da criação de personagens às mecânicas que eram uma dor de cabeça na 3ª Edição (alguém falou em Agarrar?).

Um aspecto interessante é que mecânicas antes subentendidas das edições anteriores, foram explicitadas na nova: as quatro funções (agressor, controlador, defensor e líder), os estágios de jogo (heroico, exemplar e épico), e as opções de estrutura (“builds”).

Nas primeiras vezes que vocês jogarem, o novo D&D irá parecer tão lento quanto a edição anterior, mas essa impressão é falsa. O jogo irá ficar cada vez mais fluido à medida que os jogadores forem dominando os poderes de seus personagens.

Alguns dizem que a nova edição perdeu a verossimilhança porque não existe mais a simples espadada. Isto é um equívoco duplo.

Primeiro, porque existe sim a velha e boa espadada, assim como existe a velha e boa flechada: são os ataques básicos corpo a corpo e à distância. Em segundo lugar, porque muitos dos “poderes” do guerreiro, por exemplo, nada mais são do que as manobras de ataque corpo a corpo em diversas variações. Assim como os vários talentos de tiro da 3ª Edição se tornaram poderes do ranger arqueiro.

Falando em talentos, eles continuam na nova edição, mas estão mais equilibrados, homogêneos e divididos em cada um dos estágios de jogo.

Os dois principais aspectos que mostram o quanto a 4ª Edição é superior à 3ª enquanto sistema – apesar da 3ª ser mais adaptável – são as novas regras para as perícias e para os itens mágicos.

Lembram-se do pesadelo que era montar um ladino de nível alto na hora de gastar os pontos de perícia? Pois bem, isso é passado. As perícias agora são poucas, simples e todas são úteis em todos os níveis de jogo. Nada de Usar Cordas ou outras perícias inúteis.

As regras para itens mágicos agora estão no Livro do Jogador e ficaram mais simples como todo o resto. Nunca mais a “síndrome de árvore de Natal”. Nada de trocentos itens mágicos para ter uma CA (Classe de Armadura) decente. Os espaços para itens mágicos no corpo diminuíram e foram racionalizados: cada espaço se relaciona a um determinado aspecto do jogo. Nada de usar três anéis em cada mão, cada um fazendo uma coisa diferente. Em níveis mais altos, seu personagem irá precisar de uma arma/implemento (bônus para ataques), de uma armadura (bônus para a CA) e um item de pescoço (bônus para as defesas de Fortitude, Reflexos e Vontade). Provavelmente terá outros itens mágicos bem úteis, mas apenas os três antes citados serão realmente imprescindíveis.

Outra novidade são as Missões e os Desafios de Perícias. O que era vago e opcional foi definido e incorporado ao sistema de jogo. Agora há regras para colocar na campanha e premiar com pontos de experiência, aquela história em aberto da biografia do seu personagem ou qualquer subtrama que surja no decorrer das aventuras. E nada como uma cena de combate onde o grupo precisa segurar um monte de oponentes em um lugar fechado, para dar tempo para o ladino abrir a saída, ao mesmo tempo em que a armadilha que os prendeu vai aos poucos se fechando sobre todo mundo. As regras para uso de perícias dentro e fora das cenas de combate ficaram claras e funcionais, ajudando a dar emoção às cenas, ou invés de serem um anticlímax.

O combate ficou mais estratégico e em grande medida dependente do mapa de combate e de miniaturas (ou de marcadores que representem monstros, personagens, condições, etc). Isso se desdobrou, inclusive, em como as aventuras são estruturadas na 4ª Edição, conforme visto na Fortaleza no Pendor das Sombras. Por conta disso, alguns acusam o novo D&D de ser um “wargame”.

Ora, D&D sempre foi um sistema voltado para o combate em todas as suas encarnações, mas isso não impediu que, por exemplo, campanhas de Dragonlance tivessem tanto ou mais interpretação que a maioria das campanhas de Vampiro: a Máscara. E obviamente a nova 4ª Edição não impede ninguém de interpretar, muito pelo contrário, conforme comentei no artigo neste link. A diferença é que agora não há mais discussão sobre se o ladino pode ou não desferir seu ataque furtivo: as regras estão claras, e o mapa de combate e as miniaturas não deixam espaço para nenhuma dúvida. Podia-se até jogar sem mapa e miniaturas na 3ª Edição, mas acabava sendo mais fonte de dúvidas e discussões do que um suposto incentivo à interpretação.

O Livro do Jogador fecha com o capítulo sobre Rituais. Todas aquelas magias que não eram usadas em combate agora são rituais e qualquer personagem pode fazê-los: basta ter o talento Conjuração Ritual e a perícia-chave relacionada ao ritual desejado. As principais classes conjuradoras – clérigo e mago – possuem este talento como característica de classe.

Conclusão

Vocês talvez tenham ouvido por aí muita besteira dita sobre a 4ª Edição. Muita mesmo. Inclusive por quem teria a obrigação de informar e, ao invés disso, pratica a desinformação com resenhas e artigos tendenciosos recheados de informações distorcidas e equivocadas. Felizmente, vocês têm a REDERPG, um espaço democrático e gratuito, que procura sempre informar corretamente e, acima de tudo, respeita o jogador brasileiro e a sua inteligência. É por isso que a REDE é sinônimo de credibilidade e nossas resenhas são justas.

A 4ª Edição talvez não seja para todo mundo (será que a 3ª Edição era?). Ela não tem a versatilidade da edição anterior e tentar adaptá-la para outros tipos de cenário que não os de fantasia heróica seria algo bem trabalhoso. A própria GSL – Game System License, a licença não tão aberta da nova edição – é um entrave por si. Mas os reais defeitos dela acabam aí. O resto é propaganda enganosa, desinformação e a típica falta de ética que infelizmente ainda abunda no mercado brasileiro. Um produto deve ser avaliado pelo que ele é, e não segundo os interesses mercadológicos de quem o avalia ou do veículo que publica a avaliação.

A nova edição traz o D&D para o século XXI e busca criar novas gerações de jogadores. Seu sistema é melhor, mais simples e mais funcional que o da edição anterior, e os seus produtos são de leitura mais fluente e agradável. Eles não são perfeitos e nem obras-primas absolutas (esperem a Devir lançar em português o Changeling: the Lost), mas são excelentes para o que se propõem. A Wizards não quis revolucionar a maneira como se joga – fora o primeiro D&D que criou o hobby, nenhuma outra edição fez isso – mas ela está revolucionando a maneira como se faz o suporte com o seu D&D Insider. Ficamos na espera que o DDI um dia tenha o português como opção de idioma.

Ninguém é obrigado a abandonar ou a migrar as suas campanhas de 3ª Edição: vocês podem continuar o resto da vida jogando seus jogos com os livros que possuem. Mas não se furtem a jogar ou a pelo menos experimentar a nova edição, com a mente aberta e o principal objetivo que todo mundo deve ter primeiramente ao se jogar RPG: a diversão. E, principalmente, não levem em consideração as besteiras que dizem por aí.

O novo D&D tem menos livros e suplementos que as edições anteriores, e eles são mais claramente direcionados quando são para jogadores ou para Mestres. Além disso, a Devir tem conseguido um preço bem em conta e lançado os livros com uma boa regularidade. Então, não tenham tanto receio do investimento que terão de fazer.

O D&D 4ª Edição veio para ficar. Sua aceitação cresce a cada dia e isso não é por acaso e não é apenas pela força da marca Dungeons & Dragons. Mas muitos jogadores de RPG são tradicionalistas e resistentes a mudanças. Foi o que aconteceu, quando a 3ª Edição veio substituir o velho AD&D. Sem falar nos “fanboys” e naqueles que se julgam avatares de um suposto roleplaying superior.

No final das contas, a escolha é de cada um. Esta resenha é apenas uma referência para ajudar vocês a fazerem suas próprias escolhas tendo informações confiáveis e uma avaliação honesta do novo produto.

Notas (de 1 a 6)
Layout/Arte:
5
Texto: 6
Conteúdo: 6
Notal Final: 6

Por Marcelo Telles
Publicado originalmente no antigo portal em 28/09/2009  (2671 leituras)

***

Share This Post
5 Comments
  1. Eu jogaria e mestraria o 4º edição sem o menor problema. Eu não o jogo por uma simples questão de ordem prática: investimento anterior em todos os materiais de 3º edição em português, e o fato de já ter criado um formato D20 3.x para o Tagmar, meu cenário predileto junto com o Desafio dos Bandeirantes.

    Mas para quem nunca investiu na compra de material do 3º edição, acho comprar a 4º uma boa pedida. Concordo com a resenha acima.

  2. Excelente resenha!
    Concordo com tudo que foi dito e acrescento o fato do Livro do Mestre (sei que não é o assunto da resenha) ser o mais primoroso de todas as edições do D&D, abstraindo vários assuntos dos livros anteriores que eram de conhecimento geral do grupo e não só do mestre.

    Tenho enfrentado uma guerra dentro do meu grupo com alguns jogadores tradicionalistas e que, na minha opinião, estão com PRÉ-conceito com o novo sistema. Estou tentando mediar isso e acho que essa resenha vai me ajudar.
    Parabéns!

  3. Era o tipo de resenha que eu queria ler. Valeu!

  4. Bela resenha legal Telles, apesar de que eu ainda prefira a 3.X hahaha.. Comprei o três básicos no lançamento em inglês e n~]ao acho superior tecnicamente de uma maneira geral, mas sim diferente. Claro que ele é mais funcional em vários pontos (como o agarrar mesmo), Mas eu ainda me divirto mais com o 3.x. Não é por ser purista ou tradicionalista (se fosse assim não tinha nem saído do D&D), mas pelo simples fato de que gosto mais do outro mesmo. No caso eu “migrei para o Pathfinder”, que mudou certas coisas que me incomodavam e acrescentou coisas que eu curti bastante. Mas sou a favor da diversidade, apesar de não enxergar essa superioriade técnica do 4th que muitas pessoas defendem.

    Agora esse trecho:

    “Além disso, alguns termos podem realmente soar um tanto “estranhos” no nosso idioma. Por exemplo, um ladino usar sua ação de movimento para fazer uma acrobacia deslumbrante , para em seguida realizar o ataque recuo da cobra e depois receber o benefício da tocha da cura do clérigo, talvez vá causar risadas em algumas mesas. Sem preconceito, é claro. Mas por melhor que seja o tradutor, sempre haverá um limite para o que ele pode fazer. E nós somos brasileiros, e fazer piada de tudo é parte inerente de nossa natureza. Então, vamos dar um desconto para as escolhas dos termos feitas pela Devir.”

    Me fez passar mal de rir hahahahahaa….Lembrei das várias conversas qeu tinhamos eu, vc, Luciano e Victor no encontros do BOBs sobre bizarrices de tradução

  5. Só achei um exagero falar que 3.X já tinha dado o que tinha de dar, afinal o pathfinder é bem 3.x e ta vendendo o mesmo tanto (até mais) que a 4ª.

Leave a Reply