The Black Company Campaign Setting (resenha)

The Black Company Campaign Setting é um daqueles raros RPGs onde você tem tudo de que necessita em apenas um grande e belo livrão. Devido a cláusulas contratuais entre a Green Ronin e os responsáveis pela linha, apenas um livro pode ser lançado. Assim, pode-se dizer que os autores colocaram tudo o que podiam nesse maravilhoso tomo de capa dura de mais de 300 páginas. O esforço hercúleo de reunir mais de 20 anos de romances com certeza compensou. The Black Company Campaign Setting levou em 2005 o ENnie de Melhor Cenário do ano, de acordo a votação dos jogadores.

Para quem não conhece, The Black Company Campaign Setting narra as glórias e tragédias da Black Company, um bando de experientes mercenários vivendo em um mundo sombrio de espada e magia. Lançado ainda na década de 80, o autor Glen Cook conseguiu duas façanhas, que até hoje são uma marca registrada da série. Primeiro, criou um mundo medieval sombrio, cheio de terror e magia, mas ainda verossímil. Segundo, explorou de forma original clichês clássicos da fantasia. Essa última característica é visível principalmente pelo formato dos romances. Todos são escritos na primeira pessoa por um personagem do cenário, os Annalists, encarregados de registrar as crônicas da lendária compania mercenária. É a visão totalmente parcial, mas humana, desses personagens que colore os romances. (N.E.: A série de romances está sendo lançada no Brasil pela Editora Record e os três primeiros romances já foram publicados recentemente, a partir de 2012.)Black Company

À medida que a série foi saindo, um Annalist passa adiante seu ofício para outro e é incrível como essas mudanças alteram totalmente o tom das histórias. O Annalist dos primeiros romances – Croaker – é um homem cínico e de humor ácido, mas dotado de lampejos românticos que divertem e surpreendem a narrativa. Já o livro narrado pela Annalist Sleepy é mais formal e organizado, devido aos fortes antecedentes religiosos dessa personagem.

Outra marca registrada da linha Black Company, como alguns já notaram, são os apelidos. Mercenários são em sua maioria pessoas que querem abandonar seu passado. Por isso eles adotam alcunhas (ou as ganham como brincadeira de seus irmãos de armas). Isso dá todo um estilo às histórias (um fator “cool” como quiserem). Na verdade, todo o Black Company fervilha com estilo. É o casamento mais próximo de Pulp Fiction com fantasia que você conseguirá encontrar (junto com Reinos de Ferro alguns poderiam dizer). Os personagens são humanos normais enfrentando grandes horrores, mas isso não os impede de escapar com grandes planos, vis traições e espertos golpes. Reviravoltas são uma obrigação em uma campanha de Black Company. Por outro lado, as histórias são incrivelmente letais e refletem bem o dia-a-dia dos soldados. Há trechos em que diversos personagens importantes morrem durante um cerco ou invasão, tal sendo as imprevisibilidades de guerra.

O mundo de Black Company, como dito, é um cenário de espada e magia. A magia é outro elemento significativo do cenário. Magos são figuras misteriosas que guardam a sete chaves seus segredos arcanos (principalmente seu Nome Verdadeiro, sua maior fraqueza). Rituais obscuros, segredos místicos e entidades extraplanares, todos os elementos clássicos do gênero estão presentes. A diferença é a abordagem. Primeiramente, assim como em cenários como Conan, não há divisão entre magia divina e arcana. Um sacerdote, um sábio, um alquimista, todos são praticantes das artes mágicas, não importa como se intitulem (ou quem finjam ser). Segundo, a magia é usada de forma mais ampla pelos poucos que a dominam, mas sempre de maneira indireta. É esse uso inteligente, mas ainda respeitando o mistério do sobrenatural, que dá tom à campanha. A própria Black Company conta com três magos de poder moderado: One-Eye, Goblin e Silent. Apesar de não poderem invocar demônios, lançar bolas de fogo ou dominar mentes, os três bruxos muitas vezes salvam a vida de seus amigos mercenários com ilusões, invocações de pequenos animais (como quando Silent invoca um enxame de abelhas) ou simplesmente ocultando todo o batalhão sob a névoa. As batalhas ilusórias entre One-Eye e Goblin (eternos amigos e rivais) são uma das passagens mais divertidas da história.

A última característica da magia em Black Company é o seu espectro de poder. Existem praticamente dois tipos de magos: os praticantes da magia descrita acima, como One-Eye, que compõe a maior parte dos magos do mundo; e os poderosíssimos arquimagos, como Soulcatcher ou a Lady. Esses magos mais antigos são quase semideuses. Imortais, paranóicos e por vezes insanos, são capazes de invocar tempestades, derreter muralhas em lava, invocar grande demônios ou reduzir fortalezas a cinzas se tiverem tempo suficiente. Em muitos países e nações, eles fazem parte da própria mitologia local, sendo impossível dizer se alguns deuses foram ou não magos do passado remoto.

Os primeiros romances da série descrevem como a Black Company se alistou involuntariamente para servir um dos grandes maus das terras do norte, nesse caso a temida e imortal Lady de Charm e seus servos reis-magos, os Ten Who Were Taken. Enterrados vivos e lacrados com poderosos encantos após uma batalha que ocorreu há séculos, a Lady e seus escravos são libertados e começam uma campanha sangrenta para tomar todas as terras acima do Sea of Torments. Vendo-se literalmente como servos dos maiores bichos-papões do mundo, os mercenários da Black Company tentam conviver com isso, sobreviver à campanha militar e ainda garantirem o seu pagamento. As cenas onde Croaker narra encontros com os Taken são as mais interessantes justamente pelo aspecto humano e complexo que é dado a personagens tradicionalmente narrados em fantasia como meramente malignos. Na verdade, o próprio Croaker, após conhecer e conversar com o Taken Soulcatcher, protesta “Eu odeio quando eles são humanos”.

“Soldiers live, and wonder why”.
– Croaker

The Black Company Campaign Setting é um jogo d20 voltado para um cenário mais letal e com uma magia mais maleável e por vezes sutil que o normal do D&D. Para garantir a fidelidade desses elementos, os autores literalmente refizeram todas as classes e todo o sistema de magia. Ainda assim é necessário os três livros básicos de D&D 3.5 para se jogar Black Company. Uma curiosidade, devido a alto nível de poder de certos personagens, o livro faz referências também a algumas regras do Livro de Níveis Épicos (mas este não é estritamente necessário).

Após descrever o tom das campanhas, a história e geografia do mundo, o livro cuida das novas regras de construção de personagens. Como existem apenas humanos no cenário, o jogador deve escolher entre uma lista de backgrounds que determinam o passado do personagem. Os backgrounds definem quais as perícias e os talentos iniciais do personagem, além de garantirem pequenos bônus secundários e definirem a classe favorecida. Exemplos são mendigo, físico, caçador, fugitivo, nobre, aprendiz de mago, sábio, prostituta, soldado, etc. Os backgrounds ajudam bem a passar o clima do cenário.

Em seguida vêm as classes básicas, muitas novas, outras fortemente modificados para um cenário com baixa magia:

– Academician: sábios conhecedores de vários assuntos. Muitas aventuras de Black Company giram em torno da descoberta do Nome Verdadeiro de um mago inimigo, na tradução de documentos inimigos e outras pistas que requerem um especialista em conhecimento;

– Berserker: equivalente ao bárbaro, mas com testes de resistência melhorados e acesso a talentos adicionais como Trespassar;

– Fighter: também modificado, com Action Points adicionais (veja mais a seguir). Os fighters também são os especialistas em combate em massa de Black Company;

– Jack-of-All-Trades: uma das classes mais interessantes, representa um personagem versátil em várias áreas, mas mestre de nenhuma. Possui uma ótima gama de perícias, talentos adicionais, um ataque mediano, bons testes de resistência e a chance de comprar habilidades de outras classes em níveis altos;

– Noble: uma classe especialista em influenciar e em motivas os outros. Possui também recursos adicionais e contatos;

– Ranger: uma versão sem magia muito interessante do ranger. Perde sua habilidade de Inimigo Favorito, mas ganha maestria sob tipos diferentes de terreno e a habilidade de realizar emboscadas;

– Scout: o batedor é uma espécie de ladino dos ermos, especialista em seguir inimigos em terrenos selvagens (importantíssimo para uma campanha militar). Possui habilidades de emboscada e de ataques à distância (sniper shot);

– Thief: o clássico ladrão urbano, uma versão ligeiramente alterada do ladino;

– Weapon Master: representa artistas marciais mais exóticos. Lembra uma versão não-mágica do monge;

– Wizard: a única classe com poderes sobrenaturais de Black Company. Mais sobre o sistema de magia depois;

– Zealot: uma classe para guerreiros fanáticos ou cruzados. Lembra em conceito um paladino, mas está mais próxima mecanicamente do bárbaro, pois se utiliza de sua obsessão (religiosa ou por algum código de honra) para lutar.

Black Company contém também regras para se adaptar outra classes, além de novos usos de perícias (muitas envolvendo usos militares). Temos também novas perícias como Research e Command, além das perícias sobrenaturais, devido ao novo sistema de magia – Detect Magic, Ghost Sound, Prestidigitation, Use Magic e Resistance. Há também um capítulo dedicado a novos talentos. Fora aqueles voltados para substituir a ausência de magias de cura convencionais e itens mágicos (como Greater Dodge e Physician), há talentos para batalhas em massa (como Focused Troops e Forced March) e para o novo sistema de magia (como Astral Self e Defy Time).

Como Black Company não usa tendências, há informações sobre allegiances, além de um resumo de religiões, etnias humanas e idiomas. O capítulo de equipamentos possui informações sobre armas de cerco e outros itens comuns para soldados. O maior destaque aqui são as regras ampliadas para itens de qualidade obra-prima, que agora possuem vários níveis de qualidade e podem conceder diversos tipos de bônus (+1 no ataque, +1 no dano, bônus sociais por itens equivalentes a obras de arte etc.). Há também a descrição dos vários itens místicos que aparecem durante os romances, desde os tapetes mágicos dos Taken à gororoba curativa preparada por One-Eye.

Black Company possui um capítulo para combate voltado para três escalas de conflito. Além das regras para combate individual (que receberam modificações), há regras para combate entre pelotões (mais táticas) e para batalhas entre exércitos (mais abstratas). Como o cenário é bem mais letal do que um jogo d20 tradicional, entre as regras adicionais está o novo uso do Damage Massive Threshold (Dano Massivo), que em Black Company é igual ao atributo Constituição + o nível do personagem. Qualquer dano que exceda esse número pode ser letal para o personagem, ocasionando mesmo em resultados permanentes (como cicatrizes e amputações). Há também a regra dos Battlefield Events para tornar um combate mais caótico e o uso da chamada “regra da vantagem”, que permite a um lado da batalha rolar duas vezes o d20 e pegar o melhor resultado (mas em contrapartida força a iniciativa a ser rolada novamente). Black Company traz ainda material para se construir e sustentar exércitos e novas regras sobre doenças. De quebra, para ajudar os personagens dos jogadores, há regras para o uso de Action Points (usadas em Eberron e descritas também no livro Unearthed Arcana).

“The essence of sorcery, even for its nonfraudulent practitioners, is misdirection”.
– Croaker

A grande inovação de The Black Company Campaign Setting é seu novo sistema de magia, que procura emular a forma mais livre e imprevisível com que a feitiçaria é empregada nos romances. Em certos aspectos, o resultado lembra as regras do Livro de Níveis Épicos. Os diversos tipos de magias são adquiridos pelos Wizards por meio de talentos, como Awareness, Telepathy, Wards, Create Energy, Conjure, etc. Cada magia é um conjunto de efeitos que podem ser produzidos. O Wizard (ou membro de outra classe que compre o novo talento Dabbler) usa a perícia Use Magic para invocar o feitiço. Uma série de modificadores entra no cálculo da CD do teste (tempo, sacrifícios, componentes materiais, auras mágicas, ajuda de outros magos, etc). Há ainda o uso de Spell Energy Points, que permitem ao mago resistir à fadiga provocada pela conjuração. Eles também podem ser usados para garantirem bônus nos testes. Caso um praticante de magia tenha tempo para se preparar, ele pode preparar alguns truques bem poderosos (o que bate perfeitamente com o clima do cenário). The Black Company possui também informações para True Names, regras para criação dos poderosos Taken e outros dons sobrenaturais vistos nos romances. A incrível versatilidade do sistema de magia, apesar de sua maior complexidade, foi tão elogiada que a Green Ronin lançou em 2006 o livro True Sorcery, onde adapta essas regras para D&D e outros jogos d20.

O livro contém também um capítulo dedicado a classes de prestígio (Artificer, Deceiver, Great General, Nightstalker, Oracle, Spirit Shaman, Siege Engineer, Sword Master, Topkick e Veteran) e outro voltado para monstros e adversários (com direito a demônios, bandidos, mercenários, dragões, vampiros-licantropos e outras “belezinhas” dos romances). Como não poderia faltar, The Black Company Campaign Setting vem com extensas informações sobre como criar campanhas no cenário, além de uma coleção com vários PdMs famosos e suas histórias (muitos com direito a fichas absurdamente poderosas, como a Lady, os Taken e o semidivino Dominator, com seu CR 75). O livro fecha com um índice para personagens dos romances e, de brinde, traz as regras do Tonk, o jogo de cartas prediletos dos membros da Black Company.

Como falamos no início dessa resenha, The Black Company Campaign Setting é um daqueles raros RPGs onde você pode dizer que tem um livro perfeito em mãos (na verdade, você fica com vontade ver mais, mas essa crítica, aqui, é uma qualidade). A edição e organização são primorosas, a encardenação é de boa qualidade e arte interna (preta e branca), quando não impressiona, se mostra totalmente fiel ao espírito dos romances. Vale um aviso: para quem nunca leu os romances, o livro traz um resumo completo de toda a trama. Contudo, se você tem interesse nessa maravilha, faça a si mesmo um favor e compre pelo menos os três primeiros romances (A Companhia Negra, Sombras Eternas e A Rosa Branca). São livros pequenos, de narrativa ágil e ótimos de se ler. O único risco é você também se apaixonar pelas sagas vividas por Croaker e seus companheiros.

Notas (de 1 a 6)
Layout/Arte: 5
Texto: 6
Conteúdo: 6
Nota Final: 6

Jogo: The Black Company Campaign Setting
Editora: Green Ronin
Formato: 317 p., capa dura, P&B
Autor: Robert Schwalb, Owen K.C. Stephens e Scott Gearin
Idioma: Inglês

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Esta resenha de The Black Company Campaign Setting foi feita pelo Tzimisce, e publicada no antigo portal em 19 de janeiro de 2007, onde teve 2.436 leituras.

 

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