Kingdom: um RPG dinâmico, sem narrador

Kingdom é um RPG sobre comunidades que foi  criado por Ben Robbins em 2013. Nele, cada jogador interpreta uma pessoa influente na comunidade (o tal “reino” do título), e juntos eles decidem seu destino. Além disso, os próprios jogadores narram o jogo, alternando cena a cena. Com todo esse poder nas mãos dos jogadores, a supremacia da comunidade parece inevitável, mas não é bem assim. Interesses diferentes e perspectivas contraditórias conspiram o tempo todo, e cada um pode ter uma opinião diferente sobre o que é melhor para a comunidade.

Palco

O cenário do jogo não é fixo, sendo criado pelos jogadores no início da partida. Eles podem escolher uma semente de cenário pronta, no fim do livro, ou podem criar seu próprio mundo. Em todo o caso, o cenário resultante deve ser uma comunidade composta por pelo menos vinte pessoas, com uma descrição muito sucinta, e pelo menos três ameaças em potencial; elas ainda não aconteceram, mas espreitam o reino o tempo todo. Os jogadores também devem propor duas locações cada um.  O Kingdom não restringe o gênero do cenário; qualquer coisa vale. O livro apresenta sementes das mais variadas para refletir esse fato, como um hospital, uma escola de magos baseada em Harry Potter, uma civilização imensa que conquistou o espaço, e uma legião romana.

Como exemplo, o grupo poderia criar o seguinte reino:

Netunia

Arcologia submarina que explora minérios no fundo do mar.

Ameaças

  • Um veio de minério muito rico poderia gerar uma corrida do ouro que Netunia pode não suportar
  • Falhas na matriz tecnológica da cidade podem resultar numa catástrofe
  • Revolucionários descontentes têm falado abertamente em golpe de estado.

Locações

  • Câmara de entrada, ampla sala com uma saída para o oceano, por onde ocorre o trânsito entrando e saindo da cidade.
  • Mercado aberto, grande feira livre onde todo o tipo de produto é negociado
  • Salão comunitário, um auditório onde membros da comunidade assistem a pronunciamentos importantes

(e por ai vai….)

Qualquer cenário é possível. Quer jogar com deuses do panteão grego, que decidem o futuro da humanidade de acordo com seus próprios caprichos? Kingdom aceita. Um império de elfos negros, ansiosos por se vingar dos povos da superfície? Kingdom aceita. Um grupo de galinhas presas numa granja e que querem liberdade? Kingdom aceita. Circo dos horrores, composto por pessoas com deformidades bizarras? Kingdom aceita.

Protagonistas

Em seguida, os jogadores devem criar seus personagens. Cada personagem possui um conceito, um desejo ou medo, e laços com os dois personagens dos jogadores à sua esquerda e direita. Não há atributos, perícias e nem pontos de vida; nenhum número é necessário. Os próprios jogadores decidem o que acontece de acordo com o que acharem mais interessante para a história.

Além da descrição, cada personagem possui um papel na história. Existem três papéis. Os Powers centralizam o poder político do reino em suas mãos. São eles que decidem o que o reino faz ou não faz. Os Perspectives são capazes de prever as consequências das possíveis ações dos Powers. Por último, os Touchstones refletem a opinião pública da população em geral acerca da situação do reino.

Não há qualquer restrição para distribuir os papéis; se todos quiserem ser Touchstones, o jogo flui sem problemas. Os papéis no entanto não são como classes de personagens. Eles refletem apenas a influência do personagem sobre a história e não uma profissão. O Power, por exemplo, poderia ser o bobo da corte, que é amigo do rei e detêm grande influência sobre ele. Os papeis também não permanecem fixos; contanto que certas condições bem fáceis de atingir sejam alcançadas, o personagem pode trocar de papel. Pior, se um personagem não concorda com a ação do outro ele pode tomar o papel para si!

Por exemplo, um jornalista de Netunia (Perspective) poderia publicar uma matéria condenando a nova política de impostos que visa regular a extração de um grande veio de ouro encontrado recentemente nos arredores de Netunia. Ele poderia afirmar que se implantada, Netunia sofrerá uma recessão econômica que durará décadas. Um economista (Power), pode desafiar a previsão do jornalista, levantando dados que provam que a nova política de impostos não necessariamente levará a uma recessão. O economista está portanto desafiando a previsão do jornalista. O jogador do jornalista pode ceder, impondo ou não ressalvas (talvez a pesquisa do economista seja muito simplificada, e novos dados muito difíceis de serem obtidos devam ser considerados também). Caso recuse ceder, o jogador do economista pode decidir derrubar o jornalista de seu papel, sob o pretexto que ele não entende tão bem assim as complexidades econômicas de Netunia. Nesse caso, uma nova negociação acontece, mas o jornalista está em desvantagem, e provavelmente deixará de ser Perspective. Se isso acontecer, o economista assume o papel de Perspective, e o jornalista deve escolher outro papel para si (Power ou Touchstone).

Pausas, dilemas e crises

Para indicar a situação da trama, eles devem contabilizar três situações adversas que podem acontecer. Cada uma dessas situações inicia o jogo com uma certa quantidade de caixas vazias, dependendo do número de jogadores. A medida que o trama progride, estas caixas vão sendo marcadas, e quando uma situação encher, ela deve ser resolvida. Estas resoluções são o ponto alto do jogo, e representam eventos grandiosos na história do reino.

A primeira situação adversa é O tempo passa. Quando todas as caixas dessa situação são preenchidas, uma quebra na ação acontece. Os jogadores escolhem quanto tempo se passou, e o que aconteceu durante esse período.

Crise é a segunda situação adversa. Ela representa uma problema muito sério que surgiu no reino, como uma revolta popular, uma falha geral na energia, ou o assassinato de alguém extremamente importante.

A última situação, o Dilema (que no original é chamado de Crossroad) é a mais importante das três. O dilema é uma ação que o reino pode ou não tomar. Os resultados podem parecer claros no início, mas com o tempo o Dilema pode ficar cada vez mais ambíguo e difícil de ser decidido. Um exemplo de dilema poderia ser “Netunia deve desviar recursos de sua matriz tecnológica para combater o crescente Movimento Revolucionário?”. A decisão será tomada apenas quando o dilema for resolvido, e quem tem o poder de votar são apenas os Powers. Caso não hajam Powers na mesa, ou eles não concordem com qual caminho seguir, duas novas caixas são acrescidas no Dilema e o jogo prossegue.

Lembra dos Perspectives? As previsões que eles fazem dizem respeito justamente ao Dilema. Um Perspective poderia prever que desviar recursos da matriz energética diminuiria a capacidade de renovação de oxigênio, abaixo do necessário para manter a população. Ao mesmo tempo, outro Perspective poderia propor que se os recursos não forem desviados, o Movimento Revolucionário poderia tomar o poder de parte da cidade. Decisões difíceis…

Finalmente, quando uma situação é resolvida, suas caixas são zeradas e ela volta ao jogo. No caso dos Dilemas, um novo deve ser criado.

Cenas

Cada jogador bola uma cena de cada vez. Ele determina quais personagens estão presentes (o dele deve estar), onde a cena se passa e o que está acontecendo. Os personagens presentes interpretam a cena, que dura enquanto eles estiverem de acordo. Depois, cada personagem ausente tem direito a uma reação, que o jogador deve descrever em poucas palavras. O jogador que bolou a cena deve então escolher uma caixa de crise, o tempo passa ou dilema, indicando em qual direção ele acredita que a cena avançou na trama. Touchstones podem adicionalmente aumentar ou reduzir o valor de crise em uma caixa, a seu critério.

Caso todas as caixas de uma situação tenham sido preenchidas, os jogadores devem resolver a situação, o que pode resultar em grandes mudanças, que podem aumentar ainda mais o drama da história. O Kingdom apresenta regras específicas para resolver cada um dos três tipos de situação. Estas resoluções são os momentos recomendados para se encerrar a partida, que pode ser retomada posteriormente ou não.

Terminada a cena, o próximo jogador deve criar outra cena, e o grupo prossegue alternando.

Veredito

Kingdom é um jogo extremamente dinâmico. Criar o reino demora uns cinco minutos, e criar os personagens demora outros cinco. Em questão de minutos o grupo tem um cenário novo e personagens prontos! Além disso, a mecânica de cenas faz com que a história sempre aborde as partes interessantes, inibindo a existência daquelas cenas que só funcionam como burocracia (“vou no ferreiro!”). O combate em Kingdom é completamente narrado, e os jogadores decidem o que acontece em conjunto, lembrando que apenas o jogador tem o poder de matar o próprio personagem. Sem se preocupar em ganhar níveis, os personagens ficam por conta da trama, que desenrola-se organicamente e de formas imprevisíveis.

Kingdom funciona muito bem para partidas one-shot, ou para campanhas inteiras. Cada partida é única, repleta de acontecimentos excitantes. Eu não tive a oportunidade de jogar uma crônica de Kingdom, mas imagino que o resultado seria uma história muito densa, digna de roteiro de seriado!

Por ser completamente narrativista (ao ponto de nem ter um narrador), o Kingdom exige uma boa dose de criatividade de todos os jogadores. É essencial que grupo crie o reino em conjunto, e esteja completamente de acordo com os resultados. Se um jogador tiver que jogar num reino que não lhe agrada, a sessão provavelmente está arruinada…

Outra limitação é que o Kingdom é absolutamente sobre interpretação. Se você é da linha mais old school do RPG, e prefere matar monstros a envolver-se em intrigas, este jogo certamente não é para você.

Infelizmente, o Kingdom não existe em português. Tanto o livro físico quanto o PDF podem ser adquiridos no site do autor. No momento da redação desta resenha, o PDF custava apenas US$ 9,99 (muito bem investidos, diga-se de passagem).

Por Rafael Carrasco

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