World War Cthulhu

por Mike Thorn

Apresentação

Nos últimos 12 meses, foram lançados dois suplementos distintos para Call of Cthulhu com a intenção de expandir o mundo de Lovecraft na Segunda Guerra Mundial. Achtung Cthulhu oferece uma experiência de jogo à lá Indiana Jones, enquanto a finalidade de World War Cthulhu- The Darkest Hour é providenciar um estilo de jogo mais sombrio. Ao longo das próximas semanas eu pretendo escrever sobre ambos. Vou começar com World War Cthulhu, em parte porque ele parece se adequar um pouco mais a minha preferência pessoal de jogo, mas principalmente porque ainda aguardo a entrega do Achtung Cthulhu às minhas mãos ansiosas.

Ao escrever esse review, presumo que o leitor tenha alguma familiaridade com Call of Cthulhu e as regras desse sistema. O livro básico de Call of Cthulhu é necessário para jogar World War Cthulhu.

Visão Geral

World War Cthulhu trás material suficiente para se jogar na maioria dos palcos da Segunda Guerra Mundial, mas incentiva (e facilita) jogos estabelecidos na Europa durante “a hora mais escura” (isto é, entre a queda da França em junho de 1940 ea invasão nazista da União Soviética em junho de 1941), quando as forças britânicas e da Common wealth ficaram quase sozinhas na luta contra as forças de Hitler e Mussolini. Foi neste período que Winston Churchill ordenou a Special Operations Executive (SOE) colocar a Europa em chamas, e homens e mulheres corajosos da SOE saltaram de paraquedas em territórios ocupados, envolvendo-se em espionagem, sabotagem e ajudando as unidades partidárias locais para estabelecer uma resistência eficaz ao governo Fascista.

O suplemento assume que os personagens dos jogadores serão membros do SOE, que foram recrutados para o serviço por um misterioso funcionário de alto escalão de codinome “N”. Em uma reviravolta planejada, o Guardião recebe uma série de opções diferentes para quem N pode ser. Ele poderia ser um personagem totalmente “bom”, mas ele também pode ter segredos mais sombriosem sua natureza. Seja ele quem for, N é uma fonte de informações para os personagens, e também o homem que decide aonde os personagens devem ir e quais devem ser os seus objetivos.

N também fornece ao Guardião a ferramenta perfeita para cumprir um dos preceitos fundamentais de jogo – forçar os personagensa lutar em duas frentes distintas. Sempre que possível, o livro nos diz que os jogadores devem ser afrontados por diversas– edesconexas – ameaças. Na maioria dos casos, uma dessas ameaças seráas forças do Eixo, e a outra será algo sobrenatural. Raramente, ou nunca, as ameaças de ser combinadas – por exemplo, se ter um feiticeiro nazista ou uma criatura dos mitos convocada ou sob a influência das forças do Eixo. Eu realmente gosto dessa abordagem. Não só a abordagem das ameaças múltiplas serve para manter os jogadores fora de uma zona de segurança e sob pressão, mas também é respeitosa com o material original.

Sobre este assunto, eu devo que admitir que estava um pouco ansioso com a possibilidade de sediar um jogo durante a Segunda Guerra Mundial antes de embarcar nesta jornada. Assim como muitos outros, eu perdi membros da família durante a guerra. Meu avô perdeu dois irmãos, e ele próprio serviu no norte da África e na Grécia, antes de ser capturado por paraquedistas alemães perto de Corinto, em abril de 1941. Sua experiência como prisioneiro de guerra não foi nada agradável. Para mim, seria um pouco desrespeitoso à sua memória diluira maldade humana dos nazistas, tornando-os ferramentas dos mitos. World War Cthulhu lida bem com essas questões e de forma muito delicada.

Parte I – Introdução

World War Cthulhu começa com o que almeja ser, uma série de ideiaspara histórias maravilhosamente inspiradoras. Onde outros livros iriam iniciar com contos sobre o cenário, World War Cthulhu abre com quatro páginas de notas informativas, telegramas e cartas – cada uma contendo uma ideia de aventura que abre o apetite para o que está por vir.

As ideias de aventura são seguidas por uma introdução ao cenário, o que proporciona aos jogadores e Guardião informações gerais sobre o tom pretendido pelo jogo e pelo cenário, e informações mais específicas sobre a Inteligência Britânica – e sobre a SOE e a rede de contatos de N em particular.

Se você já jogou Call of Cthulhu, sem dúvida você já experimentouao menos uma vez uma aventura destinada a funcionar como uma história de origem de um personagem. Se você já jogou Call of Cthulhu muitas vezes, é provável que você, assim como eu, já experimentou, mais vezes do que se lembra, aquela sensação de artificialidade quando você: finge descrença e seu personagem protesta “deve haver uma explicação mundana para isso”; finge ter a venda tirada dos olhosdo seus personagem; e depois fica observando como seu personagem é introduzido ao Delta Verde ou alguma outra irmandade caçadora de mitos. Em World War Cthulhu, supõe-se que tudo isso já aconteceu. Quando o jogo começa, cada personagem já teve um encontro com os mitos e isso os levou a já serem introduzidos a SOE e na esfera de influência de N.

Parte II – Recursos para os Personagens

A seção de criação de personagem do livro fornece aos jogadores alguns alicerces para ajudar a estabelecer a experiência passada de seu personagem. Jogadores experientes irão apreciar este passo como uma forma de evitar mais uma aventura sobre história de origem, e também fornece mais alguns materiais uteis sobre o passado dos personagens que pode aparecer mais tarde no jogo.

O processo de criação do personagem como um todo é bastante diferente do processo habitual de Call of Cthulhu. Nacionalidade, educação, personalidade, ocupações pré-guerra e perícias, o serviço militar e o encontro com o mito, tudo isso molda quem o seu personagem é. Citando um exemplo em particular, os membros da SOE originários da Nova Zelândia podem receber um bônus para suas perícias História Natural e Espingarda. Se eu tivesse uma crítica jocosa sobre essa seção do livro, seria ele não permitir que os neozelandeses recebam um bônus em suas perícias de Salto e Explosivos. Os autores claramente não leram O Bandolim do Capitão Correlli:

“[Mandras, um membro da resistência grega encontra alguns agentes da SOE e fica]…surpresocom suas alturas elevadas, os seus narizes vermelhos e descascando, eo grande prazer que sentemcompiadas. Alguns deles eram neozelandeses, e Mandras considerou que este devia ser um lugar especial na Grã-Bretanha, onde os soldados eram criados especialmente para o propósito de saltar de pára-quedas de Liberators e explodir viadutos.”

Um aspecto desta seção que me deixou um pouco confusofoi que quase certamenteele levará à criação de personagens mais competentes e eficazes do que os personagens habituais de CallofCthulhu. Para mim, os jogos de Call of Cthulhu devem ser sobre o ordinário eo frágil enfrentando o inconquistável.Eu acho que ai mora o perigo de se criar personagens melhores do que o normal, algum elemento disso será perdido. Entretanto, talvez em uma visão mais ampla das coisas, seja improvável que um valor de 50% na perícia Escopeta, ao invés de 40%, tenha muito impacto em um jogo onde muitos dos inimigos irão levar um tiro e nem mesmo piscar de olhos.

Uma inovação que eu gostei muito foia introdução dasPersonalidades. No início do jogo, um jogador pode escolher uma personalidade para o seu personagem, como “briguento”, “especialista”, “líder” ou “acadêmico”. Isto dá a esse personagem alguns bônus nas perícias iniciais, e também uma boa recompensa no final de uma aventura. Nesse momento, um personagem que ajudou a derrotar a ameaça de um mito, agindo de acordo com sua Personalidade,recupera alguns dos pontos de Sanidade (SAN) perdidos ao longo dessa aventura.

Esta seção do livro também introduz algumas perícias novas, tais como Criptografia e Operar Rádio, que provavelmente serão úteis aos membros da SOE.

Após as regras de criação de personagem há alguns conselhos para os jogadores (e Guardião) sobre os Procedimentos de Inteligência Operacional. Eles descrevem os princípios gerais seguidos pela SOE, e definem alguns parâmetros claros e úteis para o jogo. Por exemplo, ele deixa claro que os personagens são muito valiosos para ser perdidos em uma troca de tiros contra soldados alemães, e qualquer possível ação direta deveria se limitar a sabotagem e espionagem. Eles também deixam claro que os jogadores precisam considerar as implicações mais amplas de suas ações. Por exemplo, contrabandear itens para um prisioneiro, por meio de um pacote da Cruz Vermelha, é considerado como um grande não-não. A Cruz Vermelha precisa se manter acima de qualquer suspeita, e abusar de sua ajuda desta forma pode resultar em milhares de outros prisioneiros sendo privados de sua ajuda. Esse capítulo incentiva muito claramente um certo estilo de jogo, que é focado em sigilo, busca de informações, ações secretas e construir relacionamento com as agências de resistência local.

A Parte II do livro termina com alguns conselhos para os jogadores em Pequenas Unidades Táticas. Isso inclui conselhos sobre o manuseio de armas, uso de posição e cobertura, combate urbano, emboscadas, franco-atiradores e outros aspectos da guerra. Este capítulo se liga magnificamente com algumas das novas regras incluídas na Parte III.

Parte III – Manual do Guardião

Enquanto a Parte IIera dirigida tanto para jogadores quanto para mestres, a Parte III é especifica apenas para os Guardiões. Ela começa por delinearclaramente os Preceitos do Jogo (incluindo, como dito anteriormente, certificar-se de que os jogadores sempre enfrentem pelo menos duas ameaças). Para incentivar a abordagem das duas ameaças, essa seção encoraja os mestres a desenvolver aventuras que possuam tanto uma “Trama de Missão” fornecida pela SOE (por exemplo, “ir para a Noruega e explodir uma represade hidroelétrica”) e uma “Trama de Mito” fornecida por N (por exemplo, “descobrir o que há embaixo do lago que fica atrás da represa”). Os mestres são encorajados a tornar, algumas vezes, essas tramasconflitantes. Por exemplo, os personagens podem descobrir que explodir a represa pode libertar alguma terrível ameaça do mito, e por isso, precisam escolher entre obedecer a SOE ou obedecer N.

Essa seção deixa bem claro que o Guardião deve evitar o que o livro chama de uma combinação “Mito Militar”. Ou seja, as forças do Eixo não devem estar explorando os mitos e usando-os para fins militares. Como já mencionado, isso poderia ser percebido como diminuir o horror humano dos crimes de guerra. Como essa seção salienta, isso também transformaria os mitos em algo aparentemente controlável – e, portanto, racional e previsível.

A próxima seção é uma das minhas partes favoritas do livro. O capítulo sobre Palcos de Inteligência descreve os diferentes palcos da guerra, e oferece tantas ideiasmaravilhosas de aventura que eu fiquei desesperado ao perceber que não haveria nenhuma maneira de incluí-las todas em uma única campanha. Cada parte desta seção fornece algum material de conhecimento geral sobre o impacto da guerra em uma região e, em seguida, apresenta sugestões para “Tramas de Missão”e “Tramas de Mito” complementares para aquela região. Após essa seção, segue algumas sugestões sobre como a guerra afetou algumas das entidades e cultos dos mitos. A maioria deles, obviamente, não se importou muito com os acontecimentos, mas a guerra impactou-os de outras maneiras. Os Habitantes das Profundezas (Deep Ones), por exemplo, não gostam muito de submarinos.

A seção seguinte apresenta alguns Personagens do Mestre que os personagens podem encontrar. Dentre eles, inclui-se alguns dos grandes personagens da guerra, pessoas como Kim Philby e ‘Mad’ Jack Churchill, e também fornecer alguns aliados e inimigos interessantes,e desafios para personagens.

A próxima seção descreve Regras de Engajamento e algumas regras novas destinadas a cobrir ações tais como emboscada, tiros de franco-atiradores, cessar fogo e combate subaquático.Essas regras novas são simples e, em grande parte, evocativas e instintivas, mas há duas regras novas que trazem dimensões totalmente novas para o jogo.

“Valor de Cobertura” é uma regra nova que funciona um pouco como a regra básica de sanidade de Call of Cthulhu, mas aplica-se a um grupo ao invés de um individuo, e mede o quão eficiente eles permanecem sobuma cobertura ao invés de o quão são eles estão. Um grupo inserido no território inimigo tem um Valor de Cobertura inicial entre 0 e 99 determinado a partir de certos modificadores básicos (por exemplo, cinco homens chamam mais a atenção do que uma equipe composta por um homem e uma mulher, e assim possuemum Valor de Cobertura inicial menor), e esse valor sobe e desce dependendo dos acontecimentos da aventura. Um personagem que comete um erro grave na frente de um guarda em um posto de verificação pode prejudicar o Valor de Cobertura do grupo, e isso pode resultar em um teste de Valor de Cobertura. Um resultado ruim nesse teste pode levar a algum tipo de consequência negativa para o grupo. Talvez os personagens sejam levados para interrogatório, ou um personagem do mestre civil que observou a tentativa fracassada pode ser convencido a se transformar em um informante nazista, ou os alemães poderiam investigar os personagens mais cuidadosamente após a tentativa fracassada e perceber que há espiões ativos, fechando as estradas e passando a revistar todo mundo que passe pelos seus postos de verificação.

A outra regra nova é uma que eu apelidei mentalmente de “a regra Irritante da Vitória Póstuma”. Com esta regra, um jogador pode escolher ter sucesso automático em alguma ação dramática, mas apenas ao custo de um perigo extremoposterior. No exemplo dado pelo livro, um jogador pode escolher ter sucesso em correr até um tanque e soltar uma granada naescotilha–porém, ele ficarána linha de tiro de uma dúzia de homens da infantaria que marcham atrás daquele tanque.

A última seção da Parte III são os equipamentos. Esta seção não inclui apenas listas de equipamentos e descrições do que são esses equipamentos e como eles funcionam, mas também explicacomo funciona o mercado em tempo de guerra e como ele é nas diferentes partes do palco europeu, como funciona o racionamento e quão acessível os diferentes mercados negros são. São fornecidas as listas de preços de cada grande nação europeia, juntamente com as do Egito e da União Soviética. Algumas dessas informações são preocupantes. Osfrancesessobreviviam com menos de 900 calorias por dia, em média, enquanto que 10 milhões italianos estavam sofrendo de fomeem 1942. Com a maioria dos países tendo algum sistema de cartões de racionamento, então algo tão simples como sair para comprar uma refeição de repente se torna um grande desafio para os jogadores superarem.

Esta seção também inclui regras novas para armas e veículos. Curiosamente, uma decisão deliberada foi tomada para não incluir regras para coisas como tanques e caças aqui. Como observa o livro, é um tanto improvável que os agentes da SOE em uma missão secreta atrás das linhas inimigas tenham acesso a esses veículos.

Parte IV – Campanha

A Parte IV fornece aos Guardiões material suficiente para se jogar uma campanha com duração de vários meses de jogo. Eu não quero contar muitos segredos, mas posso dizer que este capítulo é excepcionalmente bem escrito e passa a atmosfera da época. A campanha começa com os personagens saltando de paraquedas em uma pequena cidade na França de Vichy. Eles são instruídos a fazer contato com a resistência local, estabelecer identidades secretas e aguardar novas ordens. Como você poderia esperar, a situação no local é complicada, para dizer o mínimo.

Há uma série de coisas que eu amo sobre esta campanha. A primeira é que ela consegue ser estruturada e muito flexível. Existem camadas de mistério que precisam ser descobertos, mas como essas camadas se revelamdepende muito das ações dos jogadores. Há também uma série de instruções que o Guardião pode usar para manter os jogadores seguindo em frente, sem que qualquer uma delas forcem os jogadores em uma determinada direção.

Outra coisa que eu realmente gosto é o fato de que a campanha tem uma atmosfera distinta e focada. Algumas aventuras de Call of Cthulhu sofrem por tentar colocar muitos ingredientes na panela. Em minha opinião, as melhores aventuras dependem de alguns pequenos toques complementares marcantes. Se você assistiu True Detective que você pode se recordar de como apenas alguns pequenos detalhes, como aquelas pequenas coisas de madeira e a presença constante de poças de água parada, foram suficientes para criar um maravilhoso senso de mistério e tensão. Tattersofthe Kingé uma campanha de Call of Cthulhu que cria tal atmosfera excepcionalmente bem. A campanha apresentada aqui também faz isso.

A última coisa que eu realmente gosto sobre a campanha é como ela torna fácil para o Guardião interpretar cada personagem do mestre. Além do resumo padrão, cada personagem do mestre tem uma breve descrição de como eles vão criar uma primeira impressão, os seus segredos e objetivos e alguns conselhos sobre como interpretá-los. Como exemplo deste último, o Guardião é encorajado a fechar o rosto, fingir fumar cigarros e usar palavras longas quando se interpreta um determinado membro da resistência francesa.

Conclusão

World War Cthulhu – The Darkest Hour fornece as ferramentas necessárias para jogar Call of Cthulhu na Segunda Guerra Mundial, mas o faz dentro de um foco muito específico e objetivo. Ele incentiva jogos sediados em cenários desesperadores, onde a confiança é artigo de luxo e onde os jogadores devem usar tanto sutileza e tato para derrotar tanto os horrores humanos quanto sobrenaturais.

Em termos de estilo, o livro é bem estruturado e bem apresentado, e enquanto a arte é simples, ela também é adequadae inspiradora. Eu daria 4 de 5 estrelas nesta categoria.

Em termos de conteúdo, esse é um livro que se destaca. Costumo acharuma chatice ler livros de regras, mas esse foi uma delícia. Por todo o livro há ideias de aventura que estimulam e inspiram. O clima é sinistro, respeitoso e arrepiante. As novas regras ajudam o jogo e fornecem aos jogadores atentos e Guardiões uma vantagem estratégica. Fico feliz em dar a esse livro nota 5 de 5 nesta categoria.

Link para o artigo original:

http://www.rpg.net/reviews/archive/16/16079.phtml

 

Traduzido e adaptado por Rafael Silva

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