Um Isaldar Mais Sombrio (Parte 2)

Esta é a segunda parte do artigo com ideias para realçar o “Lado Negro da Força” de sua Campanha de Crônicas da Sétima Lua. Nesta parte final, nós iremos abordar as duas últimas das Cinco Faces do Mal em Isaldar: a Ferida e a Aniquilação. Confiram a seguir… se tiverem coragem!
Cthulhu F’tang!

E eis que chegamos à Ferida, a Chaga Maldita sobre a Sétima Lua. A prova de que os deuses estão mortos e de que, quebrado o Selo, não haverá mais nada entre o horror cósmico da Aniquilação e os pobres mortais. Apenas para deixar expresso: a inspiração de qualquer mestre parar a atmosfera narrativa da Ferida é a obra de H.P. Lovecraft e o RPG dela derivado – Call of Cthulhu. Isso não quer dizer que você tem que encher as vastidões desérticas do lugar com cultistas insanos e tentáculos. Deixe-me explicar melhor…

Da mesma forma que os contos de Lovecraft, a Ferida deve passar um ar de total impotência e futilidade aos feitos das personagens dos jogadores. A Ferida não deve passar a atmosfera de ser maligna ou ter vontade própria, mas sim de aberrante, de ser alguma coisa errada no nível mais metafísico possível, um verdadeiro aborto planar. Pois veja, a própria realidade está quebrada na Ferida. Os planos inferiores podem ser um local maligno, mas pelo menos eles são algo que faz parte da existência. A Ferida está mais para uma “anti-existência”, tamanho o crime cósmico que ela representa.

Ok. Falar é fácil. Como usar isso?

Crônicas da Sétima Lua já detalha o mínimo para qualquer mestre usar a Ferida como o inferno sobre a terra (a própria água, comida e clima são hostis à sua personagem). Agora, como reforçar o clima da Queda dos Deuses, que é o papel do local? Vamos retomar a metáfora da Escuridão: havíamos dito que as trevas ali representam o terror vindo do lado sombrio da alma. Pois bem, a Ferida é o terror que vem de Fora. Da mesma forma que a Escuridão deve apavorar os heróis relevando seu lado negro, a Ferida deve igualmente chocá-los, revelando o quão horrível é a sua verdadeira realidade.

O primeiro passo é simples: a Ferida não tem volta. Não existe nada capaz de regenerá-la, de fazê-la recuar, de curar a terra. Crie histórias em torno de artefatos, de grandes feitos e enormes sacrifícios e mostre que foram todos vãos. O máximo que se pode conseguir é talvez deter algum Esquecido poderoso que despertou justamente porque os heróis foram se meter com os horrores da Queda dos Deuses. Mostre aos aventureiros a horrenda e incrível escala de poder da Ferida nesses termos.

Segundo passo: aqui é que a maldade começa. Uma vez que os aventureiros respeitem e temam o horror cósmico, mas inerte da Ferida, faça-o começar a acordar. Imagine que o cadáver de algum deus morto erga-se da Fenda e comece a rastejar em direção aos reinos civilizados – pegue um deus da luz apenas para aumentar o sadismo. Faça com que em seu encalço venham tempestades de areia, raios e loucura. Que hordas de Esquecidos menores o sigam. Faça com que clérigos da divindade em questão que se aproximem comecem a ficar loucos. E depois revele o pior: o deus morto consegue sair da Ferida, levando a corrupção da Fenda com ele, assim como as hordas de monstros.

Até agora fomos bonzinhos. Vamos apelar!

Seguindo a idéia de terror como terríveis revelações, narre a horrenda verdade por detrás do Metal Divino. Ele é literalmente os ossos (ou restos) dos deuses! Usar Metal Divino como combustível é literalmente um pecado de proporções cósmicas. Não importa as boas intenções dos tecnomagos.  Pegue essa primeira idéia e siga com conseqüências drásticas: o uso prolongado de Tecnomagia sobre uma região (como o Império Melkhar) corrompe a própria terra. Comece a desertificar o local e faça os heróis encontrarem esquecidos ou mesmo algum maldito pilar erguido aos deuses mortos – mas no meio de uma cidade do Império! Imagine a profundidade de tal nefasta verdade?

Continuando nossa rota pelas histórias mais sombrias da Ferida, vamos abordar agora os Luminares. Faça a Centelha Divina ser uma maldição. Mostre inimigos horrendos dentro da Ferida e depois revele que na verdade eles são o resultado de todo Luminar poderoso: loucura e corrupção. Todo Luminar está fadado a virar um semideus insano, que vaga em direção à Fenda para se unir aos deuses mortos em seu inferno de chamas inesgotáveis. Por que Luminares como Mor Oedis e Demetiel ainda não enlouqueceram e degeneraram? Talvez eles tenham descoberto uma “cura”: matar outros Luminares e devorar-lhes a alma! (Lembre-se: queremos ser sinistros a lá Lovecraft aqui, por isso, sem piedade.)

E, por favor, não pare por aí. Mostre aos agora desesperançados (e provavelmente quase insanos) heróis que cada uso da Centelha Divina na verdade aumenta o tamanho da Ferida. Que cada Luminar ao morrer tem sua alma jogada nas profundezas negras da Fenda, onde sofre em agonia eterna (não importa se bom, mau ou o que seja).

Faça a mesma coisa com a Magia Divina. Com a morte dos deuses, a fonte do poder divino é agora um recurso esgotável. Com o passar dos tempos, diminua o poder dos clérigos, deixe-os loucos. Após uma ou duas explorações na Ferida, revele aos heróis que um dia não haverá mais nem uma sombra do poder dos deuses sobre Isaldar. E que nesse dia o Selo finalmente se quebrará, levando…

…Ao Fim de Todas as Coisas (e Além!)

Ainda comigo? Caso queiram, podem parar e ler algo mais feliz (como Luluzinha) para relaxarem.

Prontos? Vamos lá: a Aniquilação.

Primeiro, uma confissão: a Aniquilação sempre foi para mim um McGuffin*. Por isso, meramente gastar meus dedos no teclado para escrever sobre ela é perda de tempo. O papel da Aniquilação sempre foi algo de fundo. Ela cumpre isso muito melhor do que qualquer outra coisa. Isso porque a Aniquilação é, por falta de melhor termo, o Mal Absoluto, o Nada, o sinistro sultão demoníaco Azathoth de Lovecraft, ou o deus Tharizdun de D&D (ou ainda Izrador do maravilhoso cenário d20 Midnight, que dá uma aula sobre como usar esse tipo de recurso). E se você dá voz, objetivos e ações a essas forças, você retira delas o seu charme narrativo. Exatamente por isso, qualquer tentativa de usar a Aniquilação como personagem numa história, invariavelmente estraga o papel original destinado a ela. Assim, feita essa observação (desculpe-me, mas considero-a importante), vamos ver o que podemos fazer.

Caso queria ainda usar a Aniquilação, é prudente que você mude de alguma forma a verdade sobre o que ela é. Dê a ela um “rosto”, por assim dizer. Talvez ela seja na verdade o próprio Criador primordial do universo. Talvez ela seja alguma arma criada na Guerra Divina e depois escondida, que saiu ao controle dos deuses.

Foi com um propósito assim que bolamos o Alinhamento – uma forma de ter uma força cósmica indestrutível e ainda assim dar algo para os heróis batalharem. Por isso, use os monstros e “crias” da Aniquilação, libertos no último Alinhamento. Crie cultos em torno desses seres. Como já notaram, é basicamente a mesma forma de terror da Ferida. A chave para esses seres é a mesma dos deuses mortos – a escala alienadora e apavorante. No caso das “crias” da Aniquilação, isso é fácil de fazer. Pegue por exemplo o ser Nerameth (veja o apêndice sobre Santuário, em Crônicas da Sétima Lua). Após o grupo finalmente ficar frente a frente com a colossal entidade, revela que o Nerameth não é um ser da Aniquilação. Na verdade, ele é meramente uma criatura menor – se você aprecia humor negro, ele pode ser um mero animal de Elária – que foi consumido pelo horror, meramente por ter contemplado a Aniquilação. Seguindo esse raciocínio, todas as criaturas da Aniquilação podem ser horrores ctônicos gerados meramente como um reflexo involuntário, uma espécie de tentativa da própria Criação de entender a Aniquilação.

Quanto ao Alinhamento, aqui há uma vasta gama de opções para o mestre explorar um verdadeiro apocalipse. Como todo Fim dos Tempos®, comece com profecias e sinais de que o Selo está para quebrar. Coloque a Magia Divina falhando (seguindo a dica dada anteriormente) e os clérigos enlouquecendo. Faça com que criaturas dos subterrâneos subam para a superfície, apenas para morrerem expostas aos Sóis Gêmeos – deixe os heróis descobrirem que a Fenda aumentou como uma chaga e devora aos poucos o coração da Sétima Lua, consumindo os Reinos Abaixo. Faça nascerem um número estupendo de Luminares, além de eventos bizarros ocorrem com maior freqüência – talvez relacionados com a Centelha Divina. As próprias regras da magia podem começar a mudar. Deixe claro aos jogadores de que o Fim está próximo. Mostre PdMs poderosos tentando deter o Alinhamento e morrendo miseravelmente (recomendo uma leitura do divertido Elder Evils para D&D para preparar o terreno).

Se o mestre julgar que atingiu a dose certa, é hora de começar o show. Faça Elária implodir em chamas verdes nos céus e chuvas de asteróides nefastos caírem sobre a Sétima Lua – cada um gerando ao seu redor uma nova área similar à Ferida. Exploda uma ou duas das Seis Luas no processo (talvez Calázia e Mânis). Aqui é a hora de ser “bíblico”. Faça os oceanos se corromperem em dejetos e ferverem; os céus arderem em chamas bruxuleantes verdes; os Sóis Gêmeos visivelmente enfraquecerem (ou talvez o sol menor começar a morrer e ser devorado pelo maior).

Nesse cenário sem esperanças é que devem agir os heróis. Mantendo o clima apocalíptico, faça surgir uma espécie de profeta, um PdM que de alguma forma adquiriu certos saberes e tem uma vaga noção do que fazer – seja para salvar o mundo, seja para acelerar a sua destruição (como todo bom profeta, ele deve ser bem louco). A sugestão fica por conta do lendário Último Viajante (veja a página 23, “Os Filhos da Lua Perdida”, em Crônicas da Sétima Lua). Esse PdM revela aos heróis o caminho que devem seguir.

A partir daqui fica com o mestre a solução: talvez os aventureiros tenha que abrir caminho em meio a crias da Aniquilação e horrores da Ferida. Após grande sacrifício, todos podem terminar adquirindo a Centelha Divina (caso não a tenham ainda). Seu destino é finalmente revelado: devem marchar para o Templo dos Deuses Mortos – um local erguido pela demência dos esquecidos e os vestígios de loucura das deidades caídas no interior da Fenda. Lá o grupo pode – como desfecho de uma campanha época – ascender como o novo panteão de Crônicas da Sétima Lua (talvez com um ou dois PdMs ascendendo como futuros deuses malignos). Contudo, isso não é o fim. Os novos deuses podem descobrir para seu horror que a Aniquilação é imbatível e que a única solução é fugir para outro plano – quem sabe com cada deus levando parte de uma raça escolhida ou querida. Ou talvez o mestre seja mais bonzinho e permita aos novos deuses selarem a Aniquilação novamente em Elária. Mas a que custo? Um novo Alinhamento? Com a morte das novas divindades (que, todavia, ainda poderiam ser adoradas)? Para um final realmente sombrio, mostre que a única forma de derrotar a Aniquilação é destruindo a própria existência antes dela. Assim, aos novos deuses caberia tanto o terrível fardo de carregar o real fim do mundo nas costas, como o de criar um novo mundo (que, espera-se, tenha mais sorte).

Esse último final ainda serviria de ganho para o mestre – em colaboração com os jogadores (interpretando os “novos deuses”) sentarem-se à mesa e discutissem um novo cenário de campanha a ser criado (inclusive com o segredo de que os deuses seriam na verdade os destruidores de um mundo anterior). Uma maneira bem diferente de terminar uma campanha e começar outra.

Um Mundo Pós-Alinhamento

Agora, se você quiser surpreender os jogadores, aqui vai uma idéia que tive após ver em demasia trailers de Exterminador do Futuro IV: ao invés de narrar o cataclismo, faça um jogo pós-apocalíptico. A Aniquilação aparentemente foi derrotada, apesar de isso não ser certo. As civilizações estão todas em ruínas. Isaldar é um deserto mágico arruinado, com raças corrompidas e degeneradas no melhor estilo Dark Sun (com o bônus de artefatos tecnomágicos antigos e armas de fogo servindo como “relíquias da Era Passada”). Os Luminares ainda existentes são novos e tirânicos semideuses que governam diretamente sue servos. Os demais mortais podem guerrear por água ou mesmo magia, seguindo lendas de uma cidade perdida chamada Santuário, onde a terra ainda é pura (agora puxando para um cenário mais Mad Max).

Várias luas podem estar destruídas (com direito a chuvas de asteróides ou – se você quiser mais fantasia – a restos de reinos existentes no espaço em pedaços das velhas luas, se você curte Spelljammer).

Ou talvez Isaldar tenha sido abandonada e a nova campanha se passe em outra lua. Quem sabe os humanos sejam hoje escravos de lordes-dragões de Samerash, ou pobres bárbaros vivendo em cavernas de Urásia e escondendo-se dos temidos elfos negros Vishur, agora inspirando em a Máquina do Tempo.

Boas maldades!

Espero que esse artigo tenha sido suportável e que os leitores perdoem minha insistente citação de fontes. A idéia era apenas facilitar a captar as idéias para novas campanhas (ou como encerrar algumas em andamento).

A velha dica ainda é a mais importante: se você for destruir o mundo – além de corromper e arruinar a vida dos heróis – faça com isso seja dramático e divertido! De nada adianta Demetiel varrer o chão com os aventureiros se os jogadores não estiverem tendo uma boa noite de jogo. Não se esqueça de que a história deve sempre ser sobre eles. Tenha bom senso e divirta-se!


* Popularizado pelo diretor Alfred Hitchcook, um “McGuffin” é um elemento responsável por capturar a atenção do telespectador e mover a trama para frente. Contudo, ele é em si mesmo totalmente irrelevante para a história. Um exemplo recente é o “Pé de Coelho” do filme Missão Impossível III.


Abraços,
Tzimisce
,
antediluviano ainda desempregado preparando
maldades para os Martelos da Aurora
Co-Autor de Crônicas da Sétima Lua

***

Share This Post

Leave a Reply