REIGN (resenha)

Escrito por Greg Stolze em 2007 e financiado através de um projeto no Kickstarter, REIGN é um livro de forte marca autoral, que pode ser encarado como um livro de RPG comum, ou algo mais. Por algo mais, quero dizer que REIGN não apenas possui cenário e sistema próprio, mas também um sistema de regras para “companhias”, e um texto com características ensaísticas que discute desde romance no RPG, até como deve ser terminada uma campanha (se há, ou não, um “happy end”).

Cenário

REIGN é um RPG de fantasia único, no qual o cenário é um mundo plano, formado por dois continentes que tem a forma de um homem e uma mulher (Heluso e Milonda, respectivamente) ligados por um abraço. Sol e Lua estão sempre no céu, apenas aumentando a diminuindo sua intensidade, e assim, em alguns lugares o sol nunca deixa de brilhar e outros estão imersos em eterna escuridão. O jogador é um habitante nesse mundo, mas mais que isso, alguém que é ligado a um grupo, o qual ele controla com os outros jogadores. Essa Companhia, pode ser uma guilda de ladrões, um grupo de mercenários, a liga dos mercadores ou mesmo um império.

Os dois continentes tem quatro povos principais: Os Ulds, Os Truil, Os Dindavarans e O Império. O Ulds são organizados em guildas que tem um senado, são um povo que acredita em uma meritocracia baseada na habilidade individual de cada, e assim, em seu status em cada guilda (e aí estão suas principais intrigas, seja internamente, ou entre as várias guildas). Truil é dividida entre tribos de nômades, e é o mais próximo que o cenário chega a ter de povos bárbaros. Os Dindavarans são um povo regidos por uma nobreza que valoriza uma postura séria e a resistência ao desconforto, em constrate com os plebeus que valorizam os sentimentos e tem uma postura bem diferente do militarismo pela qual a nação veio a ser conhecida nos últimos anos. E temos o Império, vasto e poderoso, por séculos o matriarcado tem dominado o mundo, mas os sinais de desgaste e declínio são evidentes.

De fato, o que distingue o universo de REIGN é muito menos o caráter dos reinos e mais elementos sócio-culturais-religiosos que tornam o cenário peculiar:

Em REIGN, cavalgar, qualquer animal, causa esterilidade. Nenhum homem, a não ser que seja castrado, cavalga animais. Não há uma razão para isso, independe do animal, e é simplemente um fato. Isso torna as mulheres importantes militarmente: se seu exército precisa de cavalaria, ele vai usar mulheres;

No universo de jogo, há um enorme racismo, e é menos relacionado a cor da pele (de fato, em REIGN quase todos são negros, havendo poucos brancos no cenário – mas que também sofrem preconceito) e mais ao povo e cultura local dos quatro grandes grupos. O preconceito racial é menor nos grandes centros urbanos, e menos acentuado que o racismo que conhecemos (eles tiveram o agravante de povos inteiros terem sido escravizados), mas existe e deve ser lembrado como parte do cenário.

Os gêneros em REIGN, tem uma relação menos acentuada. Stolze explica que, diferente do que conhecemos, onde o homem suplanta a mulher através de força física, e assim estabeleceu em sociedades primitivas um domínio através da violência, em REIGN a magia é um equalizador. Um homem pode bater numa mulher, mas corre o risco de ser torrado por raios ou pior.

A linguagem escrita em REIGN é MUITO primitiva. Além de poucos serem letrados, a lingua escrita não tem marcadores, incluindo até mesmo o espaço entre as palavras, assimatemesmoquemsabelernaoconseguelermuitobem.

Essas diferenças são dão um tom peculiar ao jogo, além de haver fantasmas, e que estes tem uma função tanto no cenário, como na estrutura do RPG. Em suma, se alguém morre ao pedir clemência de forma sincera, ele retorna como um fantasma para assombrar quem o matou. Há maneira de se evitar ser assombrado, e os sistemas de punição dos diversos grupos leva isso em conta, mas esse mecanismo cria a idéia de misericórdia em REIGN. Stolze explica que essa foi a maneira de criar, dentro do cenário, uma forma de limitar a idéia de simplemente matar os NPCs e jogadores indefesos, assim NPCs importantes ganham uma maior longevidade, e por sua vez estes irão procurar maneiras intricadas de eliminar os jogadores, com alguma sorte, impulsionando a trama.Aliás, é nesse ponto que digo que REIGN tem um forte elemento ensaístico: Stolze não se restringe em dar o cenário e regras, mas ele dá as razões para tal e muitas vezes elabora longos argumentos sobre o porquê de suas escolhas. As partes do livro sobre magia, seu bestiário, e mesmo a parte sobre combate, são recheadas com longos argumentos sobre como e porquê os Mestre de Jogo devem escolher isso ou aquilo, deixando o leitor muito a vontade na leitura e o Mestre em como irá usar o livro. Na discussão sobre magia, por exemplo, o autor busca fazer com que o Mestre escolha a magia baseado nos motivos para que ela funcione dessa ou daquela maneira, tornando essa parte mais uma discussão sobre como funcionam sistemas de magia de uma forma geral, do que simplesmente uma explicação de como esta se comporta em REIGN.

O Sistema

REIGN utiliza o ORE (One-Roll Engine), sistema que Stolze criou para Godlike e depois usado em Wild Talents, Nemesis e Monsters and Other Childish Things.

A versão em REIGN é a mais aprimorada do ORE, que utiliza D10, e você soma o atributo mais skill. Só que em vez de procurar ver quantos vão acima de uma dificuldade (como em Storyteller), a idéia é conseguir pares, trios, etc. Por exemplo, vc rola 6 dados, caiu 10, 6, 6, 5, 5, 5 e 8. Então eu tenho 1 par de 6 e um trio de 5. O valor do lance é chamado ALTURA e a quantidade de dados com mesmo valor é a LARGURA. Então, no trio de 6, tenho ALTURA 6 e LARGURA 3.

No REIGN, há testes estáticos, dinâmicos e contestados. No caso de estáticos, basta tirar um par, mas o Mestre pode exigir uma ALTURA mínima também para o lance. Stolze sugere que o Mestre de Jogo mantenha os testes estáticos com uma dificuldade mínima: “Fazer com que a trama siga em frente é uma coisa boa. Bloquear personagens porque eles não conseguem subir uma colina raramente consegue algo além de perder tempo e irritar os jogadores.”

Nos testes dinâmicos, ambas as personagens testam habilidades simultâneamente, e aí escolhem seus melhores grupos de dados. O mestre decide, de acordo com o tipo de rolagem, se o mais importante é a ALTURA ou LARGURA (antes da rolagem, claro). LARGURA normalmente é mais importante em testes de velocidade, quanto mais dados idênticos, mais rápida a ação é realizada. ALTURA é normalmente um indicativo para resistência ou força.

Nos testes contestados, uma personagem tenta fazer algo que outra tenta impedir, tipo, enfiar uma lança no peito de alguém e esse alguém não tá muito afim de ser empalado. Nesse caso, a primeira persongem tenta o sucesso, e se for bem sucedida, a outra reage com DADOS COMILÕES (sim, foi a tradução mais engraçada que arranjei), que por sua vez, podem eliminar dados do jogador ativo se sua ALTURA for maior que o do grupo de dados do adversário:

Jogador ativo tira 5,10, 6,6,5. Jogador defensivo tira 7,7,5,4,1. Como o defensivo teve um par maior (7,7), ele “come”, um dos dados do grupo do adversário, e ele não teve mais sucesso.

Se a velocidade importar no teste, o defensor não basta ter um lance com altura maior, mas também LARGURA:

Jogador ativo tira 3,3,3,1,7 e o defensor tira 5,6,9,9,10. Como um trio é mais LARGO que um par, mesmo o par sendo mais ALTO, e voltando ao caso da lança, o jogador defensor não foi rápido o suficiente para impedir o ataque.

O Sistema tem outros níveis de complexidade, como o Dado Especialista e o Dado Mestre, em que o jogador modifica os valores dos dados antes (Especialista) e após a rolagem (Mestre), assim tendo maior poder sobre o resultado.

Combate usando o ORE é normalmente muito letal, já que os sistema utiliza uma jogada para o dano e local, por exemplo, em um ataque com uma espada longa que resulte em 3×10 + 1 Dano de Matar (há também dano de choque), causa 4 de dano na cabeça, que só tem 4 caixas de vitalidade, matando a personagem. Armaduras (um elmo) ajudam a mitigar esse efeito, mas o sistema é de fato letal. O combate, mesmo com várias opções de movimento e ações especiais, é mantido rápido pelo uso do ORE, e há no livro também regras simples para combates em massa, caso os jogadores enfrentem vários adversários “pouco importantes”, de uma só vez.

A Personagem

Jogadores tem Stats e Skills. Stats são características inatas, aptidões da personagem e são divididos em Body, Coordination, Sense, Knowledge, Command e Charm. Skills são suas perícias, formas de aplicar de maneira mais focada essas aptidões.

Similar ao Unknown Armies, as personagens em REIGN tem paixões, divididas em Desejo, Missão e Dever, que afetam a narrativa e o sistema, mas a similaridade para por aí. Sua função é diferente, pois as paixões servem como motivo, e obstáculo, bonificando e reduzindo sucessos da personagem, de acordo com o contexto de sua ação em relação às paixões. Uma personagem que tenha, por exemplo, o Dever de Proteger o Príncipe, terá bônus ao realizar ações nesse sentido, mas se ele tiver como Desejo, Ganância e lhe for oferecido dinheiro para que ele sequer esteja presente durante uma tentativa de assassinato contra o príncipe, o bônus e o redutor se anulam, mas se ele tiver como Missão, vingar-se do Culto de QualquerCoisa, e esse culto que tentou lhe subornar tenta eliminar o príncipe, ele tem pelo menos o bônus da Missão para evitar o assassinato.

O sistema ainda tem Vantagens (características que bonificam a personagem de alguma forma), Problemas (coisas que atrapalham a personagem e lhe dão pontos de experiência – XP – quando pertinentes em uma sessão), além de Disciplinas Esotéricas e Segredos de Combates, estes últimos são também similares a vantagens, mas são comprados em níveis e exigem o uso de testes para sua realização (Stolze os considera refinamentos das perícias).

A criação de personagem pode ser realizada de duas maneiras: alocação de pontos ou aleatória. O sistema de alocação de pontos é simples, mas nem de longe é tão rápido quanto o outro, pelo simples fato de que depende de uma única rolagem de dado, definindo não apenas stats, skills, mas também dando uma idéia sobre a história da personagem, uma aplicação divertida do conceito do ORE.

A Companhia

REIGN tem dois sistemas: um que rege o universo em um nível próximo ao jogador e um outro, que rege os grupos envolvidos, as companhias. Uma companhia em REIGN é desde uma gangue de rua a um reino e os jogadores são responsáveis por uma. O sistema é uma adaptação do ORE, e sendo assim é simples e rápido.

Todas as Companhias tem um Objetivo e Qualidades (Influência, Poder, Tesouro, Território e Soberania) que vão de 1 a 6, e que abstracionam seus elementos em vez de especificar cada item, inventariando e contabilizando cada tropa, espada e moeda de ouro.

As companhias são criadas pelos jogadores em conjunto e realizam ações numa plano à parte, por exemplo, os jogadores tem como Companhia um Ducado, e resolvem por fim a um Culto que tem como principal atividade, rapto e canibalismo. As personagens podem ir seguindo com suas vidas normalmente e fazer uma jogada de Companhia para tentar eliminar o culto, utiliando uma de suas Qualidades, se ordenarem que seus soldados ataquem o culto, é Poder, por exemplo. Isso altera o cenário de jogo, já que o culto pode reagir diretamente com os jogadores por conta dessa ação. O mais interessante no entando, é quanto os planos se mesclam. Os jogadores por exemplo, podem causar um incêndio no templo do Culto, e isso bonifica o teste de sua Companhia. Por outro lado um ataque da Companhia contra o culto, pode tornar os cidadões do ducado mais receptivos com os membros da Companhia, por terem eliminado uma ameaça. O sistema, para evitar abusos, faz com que cada Qualidade usada, fique reduzida em 1 para cada utilização, até que se passe um mês.

Com o elemento da Companhia, REIGN dá um novo elemento cooperativo ao RPG e permite que a personagem não apenas seja um rei, mas que tenha responsabilidades e poder, indo além de apenas uma vantagem individual.

O que torna o sistema realmente bom, é sua simplicidade. Simplicidade tal que permite uma fácil importação para outros jogos de RPG, sem que seja preciso sequer uma conversão: basta usar o ORE para as Companhias, e o sistema normal do outro RPG para as atividades em nível individual.

Conclusão

Uma das coisas mais curiosas em REIGN é como um produto independente, escrito apenas por uma pessoa, tem tanta longevidade e suporte. O livro pode ser adquirido em capa dura “On Demand” através de lulu.com ou em capa mole na indiepressrevolution.com, em em formato digital na drivethrustuff.com. Stolze continuamente faz projetos no Kickstarter, utilizando o “ransom model”, ele produz material que é pago por fãs e então disponibilizado gratuitamente para qualquer um. O sistema tem garantido o suporte de REIGN já por três anos, e esse artigos e pequenos suplementos são compilados em livros – também distribuídos em formato digital, gratuitamente – anualmente, The First year of Our REIGN, The Second Yar of Our REIGN e mais recentemente, The Third Year of Our REIGN.

O livro é bem organizado, e contém ilustrações em quase todas as páginas. O layout e estilo da tipografia é bem evocativo do gênero de fantasia, sem no entando provocar qualquer problema de leitura. A única coisa que pode causar confusão é a organização de sessões do livro que tratam dos principais grupos em REIGN, que estão espalhados pelo livro em vez de concentrar todos em um único ponto.

Com tudo que há no livro, desde um cenário e sistema próprios, sistema para Companhias que pode ser usado em outros RPG, discussão madura sobre temas que podem ser úteis para qualquer Mestre (magia, romance, etc.), além de uma linguagem clara e um livro bonito e bem diagramado, só posso dizer que o livro é excelente. E o suporte contínuo através de materiais gratuitos que mantém a qualidade da linha não é algo que deve ser ignorado.

O texto de Stolze é excelente. Não aprecio tudo que ele escreve, mas sem dúvida é um dos melhores escritores que já trabalharam com RPG, uma área onde atua a mais de 20 anos. O conteúdo do livro é igualmente, excelente. Não apenas é um RPG completo (não divide o básico em vários livros), como amplia as idéias sobre RPG de uma forma geral, além de trazer regras que podem ser usadas em qualquer outro jogo sem uma adaptação. Arte é layout são muito bons, inclusive a forma como a tipografia é utilizada acaba por dar ao livro uma melhor caracterização, remetendo a idéia de “fantasia medieval” e “nobreza”, sem precisar se apoiar tanto em desenhos. Só não digo que é excelente pela falta de uma maior variedade, pelos mapas dos continentes deixarem a desejar, mas as peças usadas são esteticamente adequadas e até bonitas, além de duas belas opções diferentes de capas (por ser On Demand, você pode escolher).

Notas (de 1 a 6)
Texto: 6
Conteúdo: 6
Arte/Layout: 5
Nota Final: 6

 

 

 

Por Haroudo Xavier Filho
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