(republicação) Luar no Mississipi

Caminhei devagar e com cautela pela rampa que ligava o cais ao “Rei do Mississippi”. Olhei pelo canto do olho para os dois seguranças que haviam me deixado passar.

– Boa noite, sr. Leblanc. O senhor é esperado – eles disseram. Fiquei surpreso. Fazia menos de uma hora que eu havia descoberto o “Rei do Mississippi”, um daqueles antigos barcos a vapor movidos por uma roda traseira. Eles foram a glória do Mississippi no século XIX e hoje são grandes atrações turísticas de Nova Orleans: todo bom pacote turístico inclui um passeio num desses barcos.

O fato de os seguranças (e, por extensão, o chefe deles) já me esperarem só confirmava o que eu já suspeitava: estava sendo seguido desde ontem. Mas vamos contar tudo desde o início…

Meu nome é Mark Leblanc, investigador particular, especializado em pessoas desaparecidas. Uma área de investigação que cresce cada vez mais. O número de pessoas que somem é impressionante e aumenta a cada ano. Sim, nasci e cresci aqui, em Nova Orleans, senão não teria escolhido uma profissão como essa, que pode ser arriscada em demasia. Sei que muita coisa que é considerada lenda urbana dessa cidade na verdade existe. Graças ao bom Deus, nunca vi nada, mas sabe como é: “Eu não creio em bruxas, mas que elas existem, existem…”. E Nova Orleans é a terra do vodu na América. Acho que não preciso explicar mais, preciso?

Anteontem duas senhoras foram ao meu escritório. Queriam me contratar para encontrar os filhos desaparecidos. Elas são pobres, juntaram suas economias para pagar por meus serviços. Não cobro tão caro assim, mas elas são realmente pobres, autênticas representantes dos creoles da Louisiana de origem afro-americana. Fiz um preço bem em conta, até devolvi uma parte. Não que eu seja um bom samaritano, mas também não sou o tipo de canalha que se aproveita de duas mães desesperadas.

Jack e Kate, os filhos delas, eram mais ou menos namorados. Ele era um dos milhares de músicos que tentam carreira na cidade, cantor e saxofonista. Kate era menor de idade. Arranjou documentos falsos para trabalhar de bargirl. Foram vizinhos na infância, em uma das pequenas cidades nos arredores de Nova Orleans, nessas onde a maioria dos creoles mais pobres mora. Reencontraram-se há algumas semanas, quando ele tocou no bar onde ela trabalhava. Estavam começando a sair juntos.

Há uma semana, um foi encontrar o outro e não foram mais vistos. Falei com testemunhas no lugar do encontro, e os dois foram vistos separadamente, provavelmente um esperando pelo outro. Primeiro Kate e, duas horas depois, Jack. Não chegaram a se encontrar e ambos sumiram.

Sem nenhuma pista sobre o paradeiro dos dois, resolvi rodar pela cidade e falar com alguns informantes.

Tenho um informante “quente” para assuntos que envolvem música e casas noturnas da cidade. Jim é dono de um nightclub conhecido, o The Blue Nile Nightclub, e sempre sabe de muita coisa que acontece em Nova Orleans. Sabe ainda mais sobre o circuito de casas noturnas e de música da cidade. Depois de muitos drinques e evasivas, ele finalmente abriu a bico:

– Jamais diga a ninguém que fui eu que te disse, entendeu? Se quer saber de algo estranho, que tenha relação com bar ou música, tem de falar com o Príncipe. Procure-o na House of Blues.

Sempre existiu um papo de que os principais bares e casas noturnas de Nova Orleans pertenciam a um único cara ou então que ele era sócio de quase todos eles. Pelo visto, ele realmente existe e descobri como era conhecido: o Príncipe. Deixei Jim com o seu drinque e saí pensando com os meus botões se o Blue Nile e Jim também não faziam parte do esquema do Príncipe…

Fui para a House of Blues, uma das maiores e mais tradicionais casa de música da cidade. O gerente não gostou muito quando pedi a ele para ver o Príncipe. Pior: ainda comentou comigo que “Jim não devia ficar abrindo a boca”. Desejei do fundo do coração que nada acontecesse com o meu amigo e informante. De repente, quando a coisa não ia bem, um garçom chamou o gerente para atender o telefone. Ele voltou em seguida e falou:

– Por favor, senhor, me acompanhe. Quem o senhor desejava ver irá recebê-lo agora.

Após passar por três portas, uma longa escada e dois seguranças com caras pouco amistosas, entrei no que seria o “escritório” do Príncipe. Era uma sala grande, com iluminação e decoração vermelhas e psicodélicas. Havia móveis baixos, pufes, almofadões, narguilés, drogas dos mais variados tipos e uma dúzia de gente seminua espalhada por todo lado, se drogando ou se “roçando” ao som de uma música “viajante”, de estilo bem “lisérgico”. Seria o inferno ou o paraíso, conforme as convicções de quem estivesse olhando. Ao fundo pude ver um homem negro sentado numa cadeira grande de palha, como se fosse o rei daquele lugar, com duas mulheres em seu colo.

Cuidadosamente transpus a distância até ele passando pelas pessoas no chão. Quando me aproximei, pude ver que de cada lado do “trono” havia um violão num descanso. Um era muito velho e gasto. O outro era um Gibson feito sob encomenda. Ele dispensou as duas beldades e me indicou um pufe próximo a ele para que eu sentasse. Ele sorriu e perguntou em que poderia ajudar.

Contei a ele sobre o casal desaparecido, as duas mães desesperadas e que apenas gostaria de ajudar as duas senhoras. Inicialmente ele falou de modo sombrio, dizendo para eu esquecer o caso. Do modo mais polido que pude, sem parecer um otário, insisti que precisava de alguma coisa para dizer às senhoras, que minha intenção era só ajudá-las e que não queria me meter nos negócios de ninguém. Ele sorriu, acariciou as cordas do violão velho e disse:

– Muito bem, sr. Leblanc. Vamos fazer um trato… Dizem que acima de todo príncipe sempre há um rei. Se eu sou o Príncipe, como dizem, descubra quem é o Rei de Nova Orleans e eu lhe direi o paradeiro do casal. Você tem 24 horas para descobrir. Aceita? – perguntou, estendendo a mão.

– Bem, nesse tipo de aposta, sempre se dá uma pista, uma dica, algum tipo de enigma ou charada para quem tem de cumprir a tarefa… – disse-lhe fazendo cara de bobo.

O Príncipe riu e respondeu:

– O Rei dessa cidade está num lugar onde todos o vêem, mas ninguém o nota. Um lugar que já se moveu, mas que não se move mais.

Eu aceitei.

Ilustração por Ronaldo Barata da Quanta Academia de Artes para o conto Luar no Mississipe publicado na Dragão Brasil 116

* * *
Ou o Príncipe não era bom em charadas, ou talvez ele quisesse mesmo que eu encontrasse o Rei. Acordei o mais cedo que consegui e comecei a minha busca. Embora seja um boêmio e não goste nem um pouco de acordar cedo, adoro o sol e o calor de Nova Orleans. E aquele era um daqueles dias quentes de verão…

Pesquisei, andei, fui à biblioteca e ao arquivo da cidade. A resposta era relativamente simples: o Rei estava em algum barco que não navegava mais, ancorado no rio Mississippi. O rio passa pelo meio da cidade. A população passa por ele todo dia e ninguém vai reparar em mais um dos muitos barcos antigos que aqui existem. Durante o dia comecei pelos que eram atrações turísticas ou museus flutuantes, mas não tive sucesso.

À noite, após ir a dois restaurantes que eram barcos ancorados, finalmente consegui a informação que buscava: o barco que eu procurava era o “Rei do Mississippi”. Óbvio, não? Óbvio demais…

Dizem que o proprietário dele é um multimilionário excêntrico, que mantém o barco em perfeito estado de conservação. Contam que, apesar de possuir um motor a diesel no lugar da antiga fornalha a vapor, o barco nunca sai do cais.

E aqui estou eu, subindo a bordo do “Rei do Mississippi”, prestes a conhecer o “Rei” de Nova Orleans.

Adentro o barco. Ele é ricamente decorado, predominando o dourado (ouro de verdade?), o branco e os detalhes em vermelho. Como grande parte desse tipo de embarcação, era e ainda é um cassino flutuante. As mesas de jogo estão novas, intocadas. Então, quando olho para o fundo do salão, eu os vejo…

Há duas pessoas sentadas numa pequena mesa jogando xadrez. Um muito jovem, o outro de meia-idade. O mais velho é um tipo latino, talvez espanhol ou italiano. Nada de especial. Já o mais jovem é extremamente bonito. Ainda um adolescente, seus traços são perfeitos, milimetricamente exatos: um rosto angelical, com a perfeição de uma escultura neoclássica. Seus cabelos dourados o tornam a coisa mais próxima de um anjo que eu já tenha visto na terra. E então, seus olhos azuis desviam do jogo e me fitam. Não sei por que, mas eu gelo… Depois ele se volta novamente para o tabuleiro, mas eu continuo paralisado…

O tempo parece ter parado. Não sei quanto tempo se passa. Não tenho vontade de me mexer ou dizer alguma coisa. Subitamente, o homem de meia-idade move uma peça e diz: “xeque-mate”. E o jovem “anjo” então comenta:

– Não sei por que insisto em jogar com você. Eu sempre perco! – diz ele com um ar aborrecido. O outro ri e lança um leve olhar, me indicando para o jovem anjo, que então se lembra de mim:

– Ah, sim, o nosso convidado! – E em seguida ele se vira para mim – Parabéns, sr. Leblanc, poucos já conseguiram chegar a mim. Permita-me que eu me apresente: meu nome é Ferdinando e sou o dono dessa cidade, ou o Rei, como prefere chamar o meu Príncipe… – E nesse instante, por uma porta atrás deles, o Príncipe adentra o salão, trazendo o seu velho violão a tiracolo. Ele beija carinhosamente Ferdinando e puxa uma cadeira para se sentar perto deles.

– Toque algo para nós, meu querido Johnson! – pede Ferdinando ao Príncipe, e em seguida se vira para o seu oponente no xadrez: – Aí está conforme você me pediu, meu caro Guido. A pessoa mais capacitada que há para ajudá-lo nas suas pesquisas sobre vodu. Tenho certeza de que ele conseguirá se infiltrar no submundo local ligado ao culto.

Eu suo frio. Tento me mover, mas não consigo. A música do violão é linda, um delta blues ao estilo antigo, mas ela me deixa mais desesperado… O Príncipe toca e canta blues como um deus. Nesse momento, meus pensamentos são cortados por Guido, que fala para Ferdinando:

– Muito obrigado. Estou em dívida com você – diz, com seu forte sotaque italiano.

– Não se preocupe. Sempre posso precisar de sua ajuda… Mas agora, mande-a fazer, mas do meu jeito! – E o jovem anjo sorri, com malícia demais para o meu gosto.

Uma outra pessoa adentra no salão do barco. É Kate. Reconheço das fotos. Ela está linda e nua da cintura para cima. Ela faz uma reverência, ajoelhando-se perante Ferdinando e Guido. Levanta-se e vem em minha direção, indo para trás de mim. Não consigo me mover. Então sinto o bico dos seios dela roçando em minhas costas, o hálito quente e a língua lambendo meu pescoço. Fico imediatamente excitado. Eu e Ferdinando, que parece se deliciar com tudo.

E aí eu sinto a dor: a garota está me mordendo no pescoço! Parece que estão enfiando uma lança em minha garganta, mas eu não consigo gritar!… E de repente, o prazer… Começo a perder os sentidos…

* * *
A última coisa de que me lembro é de olhar pela janela do salão e ver o luar refletido no Mississippi. Ele que se tornou, desde então, o meu mais constante companheiro.

E eu nunca mais vi o sol.

“Luar no Mississippi” é um conto originalmente publicado aqui na REDERPG,
ambientado no minicenário “Nova Orleans”,
criado por Marcelo Telles para o RPG Vampiro, a Máscara,
e que foi publicado na Dragão Brasil 116.

Dados da publicação original
1209 leituras
Republicado em 30/12/2011

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