Um conto de Réia: O Inquisidor

Eurone, ano 1300 depois do Martírio de Sóter

A pequena vila de Salutat, na Íbria ardia em brasa depois do ataque misterioso da noite anterior. Dois terços de seus moradores estavam mortos, os demais eram prisioneiros do cavaleiro Tomás de Quincy, um Alto Inquisidor da Igreja Demiúrgica Minosiana e Cavaleiro-Mor da Sagrada Ordem dos Cavaleiros de Sóter, um guerreiro versado na Fé e enviado de Demiurgo para purificar os povos de Eurone.

Na frente dele estava Marydith, a bruxa, presa a uma estaca e cercada por gravetos e lenha pronta para ser queimada. Tomás observava tudo de seu pequeno trono improvisado, usando as vestimentas cerimoniais negras e vermelhas ele se lembrava do primeiro encontro com aquela herege.

Era uma tarde fria de inverno na Vila de Westfall, na Grã- Avalônia. O então noviço Tomás seguia para a Abadia do Tribunal do Sagrado Ofício de Westfall, que ficava a poucos minutos de caminhada da vila, para um encontro com seu mentor, o Alto Inquisidor Guilherme de Gui, o mais temido inquisidor daquela época. Tomás havia concluído seus estudos em filosofia e teologia e seus treinamentos militares, obrigatórios entre todos os que almejavam avançar na hierarquia dos Cavaleiros de Sóter e da Inquisição.

Ele cavalgava sem pressa pela estrada aberta no bosque de Westfall quando um grito de socorro o surpreendeu, esporando o cavalo e sacando sua espada longa ele conseguiu identificar dois orcs violentando uma jovem. Pedindo inspiração ao Demiurgo, ele se lançou contra os inimigos, o primeiro golpe expôs as víceras do primeiro orc que urrou da miserável dor e tombou ao lado da garota assusta e praticamente nua. O segundo inimigo se virou para Tomás com um machado toscamente produzido, o cavaleiro partiu em direção ao inimigo que defendeu seu golpe e socou Tomás com tanta força que o derrubou do cavalo. Tonto e sem sua arma Tomás se tornou um alvo fácil para o orc que girou seu machado para degolar o jovem soteriano. O fim estava próximo e Tomás orou ao seu deus para que sua alma fosse aos céus. Porém palavras estranhas em uma língua proibida cruzaram os seus ouvidos e numa fagulha de pura energia dardos acertaram o monstro que pereceu e caiu sobre Tomás.

O guerreiro se pôs de pé rapidamente. Seus olhos apavorados fixados na garota, que não devia ter mais que dezesseis anos. Era tão bela que lembrava imagens da Sagrada Virgem, com longas madeixas negras emoldurando o branco de seu rosto. Era a primeira vez que via uma mágica arcana em sua vida e sabia que essa garota era uma inimiga da Igreja. Uma herege que precisava ser destruída.

Ele se aproximou da jovem que exausta e ferida arfava encostada numa árvore. Ela tremia de frio e suas roupas não passavam de trapos. – Mais fácil assim – pensou Tomás – cuido dela, e levo aos meus superiores.

– “Como tu te chamas, senhorita?” – Tomás perguntou suave.

O noviço falava a língua da Avalônia fluentemente devido aos anos que serviu com o Alto Inquisidor De Gui. A garota não respondeu por puro medo. A cruz de Sóter no peito daquele homem era sinal de fogueira para ela, assim como sua mãe havia sido queimada.

– “Por favor senhorita, permita que eu te ajudes.” – Tomás sabia que as magias daquela bruxa poderiam matá-lo – “Há algum lugar que eu possa levar-te?”

Ela apenas apontou para dentro da floresta. Tomás a colocou no colo e foi seguindo as indicações até se deparar com uma casa de madeira coberta por hera e musgo, o cheiro da morte podia ser sentido centenas de metros de distância.

– “Senhorita, o que aconteceu em tua casa?” – Tomás não esperava propriamente uma resposta. – “Há algo que eu possa fazer?”

– “Senhor, meu nome é Marydith, perdoe meu agir.” – ¬ ela tremia nos braços de Tomás –¬ “Me ajude, tenho que enterrar meus irmãos e meu pai. E aquelas criaturas podem voltar. Existem mais delas por essas terras…”

Tomás concordou com a cabeça e entrou na casa, ela esta repleta de sangue e morte. O lugar parecia uma escola de mágica. Dois corpos sem cabeça estavam no chão e o corpo do mais velho deles, um meio-elfo estava pregado por uma lança à parede.

Marydith dormiu por três dias e três noites, Tomás arrumou a casa sepultou os mortos e cuidou da herege. Quando a moça acordou ele avisou que já havia perdido muito tempo ali e que tinha uma reunião muito importante na abadia e que certamente seria repreendido por tamanho atraso.

– “A estrada para a Abadia é muito perigosa.” – advertiu Marydith – “ladrões e orcs vagueiam por lá. Eu sei um caminho que é seguro. Só que é mais longo.”

Tomás tomou as mãos da garota com afeição.

– “Tu farias isto por mim?”

Ela confirmou com a cabeça. Recolheu algumas frutas secas e mantas para protegê-los do frio colocou tudo em uma sacola e eles partiram.

O caminho era complicado e cheio de rodeios. Eles passaram por várias ruínas e cruzaram pontes que Tomás numa imaginou existirem. Ele podia ver a abadia logo ali. Era a hora de prender a herege e levá-la as autoridades. Porém ele sabia que o destino dela era a fogueira e ele a amava.

Ele andou em direção a abadia, mas não foi muito longe. Podia ouvir o choro de Marydith. Ele se virou e correu em direção a ela. Um beijo, o primeiro e último beijo que Tomás deu a uma mulher.

– “Mary, venha comigo, converta-se à fé soteriana e poderemos viver felizes.”

Ele via as chamas nos olhos dela, o ódio e todo rancorque eles guardavam. Tomás não compreendia aquilo, não sabia o que dizer. Marydith o empurrou.

– “Tomás de Quincy, você é igual a todos os outros de sua fé. Um bruto, um assassino que não respeita a crença dos outros. O pior dos cegos, que não vê porque não quer. Sua Igreja matou minha mãe e tomou todos os bens de minha família. Condenou dezenas de inocentes de minha aldeia a morte por não acreditar no seu Deus. Eu devia ter matado você. Para vingar minha mãe. Mas não, eu me apaixonei por você, por você ter sido doce e cuidadoso comigo, mas agora o que você me pede é que eu seja outra pessoa.”

Ela repetiu palavras arcanas e dardos atingiram Tomás que caiu no chão desacordado. Só acordou na cama de uma cela que reconheceu ser da abadia, ao seu lado estava Guilherme de Gui. Aquela tarde Tomás de Quincy foi consagrado Cavaleiro de Sóter e nomeado Inquisidor do Tribunal do Sagrado Ofício. E por vinte e seis anos caçou Marydith e todos que se opusessem à Igreja Soteriana.

O calor das brasas trouxe Tomás de volta ao presente. Ele observava a bruxa ali, finalmente depois de tanto tempo estava novamente de frente com Marydith. Ele sinalizou para que um dos seus soldados pegasse a tocha que purificaria a terra daquela bruxa. Uma herege. Tomás se levantou e seguindo o rito iniciou seu discurso.

– “Marydith de Westfall, é acusada de heresia e bruxaria. Em nome de Demiurgo terá seu corpo destruído pelas chamas purificadoras. Tem algo a dizer em sua defesa?”

O silêncio dos soldados era inquietante, a bruxa levantou a cabeça e novamente cruzou o olhar com o de Tomás.

– “Tomás” – ela gritou – “você foi o único homem de minha vida.”

Os soldados perplexos não sabiam o que fazer. Tomás pegou a tocha e acendeu a fogueira. Pela primeira vez em sua vida de Inquisidor não havia um sorriso de prazer em seu rosto ao cumprir suas ordens. Naquele dia Tomás de Quincy queimou a única criatura que um dia amou.

Por Diego Dubard
Conto para o cenário de D20: REIA
Réia é um cenário de fantasia medieval épica
criado por Marcelo Telles para o sistema D20.
Não percam, no primeiro domingo de cada mês, a coluna mensal
Réia: Notas de Criação do Cenário,
em que o autor fala do desenvolvimento desse novo cenário,
e participem no nosso fórum do tópico dedicado a Réia
https://www.rederpg.com.br/wp/forum/reia/

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