As Filosofias do Bushidô e Shouridô

Desde a primeira aparição em L5R durante o fim da Lotus Edition, shouridô e as virtudes negras têm estado entre os mais fascinantes e atraentes aspectos do cenário de L5R para mim. Embora Rokugan não seja tão filosoficamente influenciada quanto muitos outros, como Mago: A Ascensão ou Unknow Armies, em muitos aspectos ela é mais filosoficamente relevante pois a filosofia raramente é questão de debate ou influência direta nas ações dos personagens, quer sejam personagens históricos de contos oficiais ou os PCs e NPCs numa mesa ou live-action. Como tal, ter duas filosofias contrárias que direcionam os personagens apresenta uma grande oportunidade para exame e introspecção não abordada em muitos outros cenários. Infelizmente, a natureza rígida de Rokugan torna a discussão, que dirá o contraste dessas filosofias muito difícil. Ao invés disso, as discutirei aqui com objetivo de fornecer pensamentos e aconselhar como incorporá-las melhor ao seu jogo caseiro.

O Que é Bushidô?

Vamos começar examinando a mais velha e mais prestigiada das duas filosofias: bushidô. Como muitas palavras japonesas, ela é composta. Bushidô se separa em bushi-dô, literalmente, o caminho do guerreiro. Mas uma tradução mais profunda revela mais. Bushis não são simples guerreiros. Eles são os guardiões e protetores da sociedade de Rokugan. Eles são uma classe de samurais, e embora um Cortesão Doji dificilmente possa dificilmente se considerar um bushi, ele poderia facilmente seguir o caracter de samurai em Japonês que é composto de duas figuras que significam “espada” e “deter”, e assim o caracter de samurai se traduz literalmente como “deter a espada”. Na verdade, uma tradução do caracter “bu” tem significado similar: “parar a lança”. Quando combinamos esta tradução com a de bushi como um protetor, temos um entendimento nublado do que um bushi é: alguém que detém e protege as pessoas da violência, uma tarefa que pode ser exercida por um cortesão tanto quanto por um guerreiro.

A palavra “dô” é um pouco mais complexa de se traduzir mas novamente o entendimento em nuances é bem merecedor. Literalmente, “caminho”, outras traduções incluem “trilha” ou até mesmo “chamado”. Um dô não é simplesmente um conjunto prescrito de regras e ordens, mas uma transição. Ele não sugere um rígido modo de viver a vida, mas uma orientação.

Quando recombinamos tudo em “bushidô”, temos não um código samurai legalista mas uma jornada infinita. Seguir o bushidô não é um conjunto de ações prescritas – ou pelo menos, não só isso – mas uma jornada infinita à retidão moral. Alguém que segue o bushidô pode não ser perfeito em toda ação, mas se dedica a proteger os outros, deter a violência, preservar a sociedade, seguir a honra. Ele pode errar, mas por estar tentando seguir o caminho, isto é apenas temporário. Bushidô não é o objetivo final que é alcançado ou não alcançado, mas a inteira jornada sem fim.

Tá, Mas O Que é Bushidô?

Entendendo a flexibilidade e diversidade do bushidô, somos mais capazes de entender seus componentes. Saber que bushidô é uma jornada, e não um destino, as virtudes se tornam por si só não padrões rígidos para mostrar se um samurai atingiu ou não a honra, mas como guias, um mapa de estradas se você quiser, de como um samurai pode atingir a honra. Assim, – e isto é crítico – elas são um sistema onde outros podem ver quão bem este samurai está progredindo à honra.

Uma área em que L5R parte do Japão histórico é o código do bushidô. Enquanto L5R adota o conceito moderno dos sete princípios ou virtudes do bushidô, não há precedente histórico dessas sete virtudes, que variavam desde zero, deixando a natureza do bushidô inexata, a cinco virtudes específicas, a incríveis treze. Historicamente, as subjetividades das virtudes do bushidô deixam-no aberto a muita interpretação, mas ao especificar as sete virtudes de L5R, os escritores nos deram uma Rokugan com um sistema ético e moral. Examinar este código ético nos permite verdadeiramente entender como o bushidô funciona.

Mais importante, dessas sete virtudes do bushidô, apenas uma lida com o indivíduo (coragem) enquanto outras definem como interagimos com outras pessoas (compaixão, cortesia, dever, honestidade e sinceridade). Lidaremos com honra à frente, mas vamos considerar esta proporção de 5/1; ela diz o propósito do bushidô e ética rokugani. Bushidô não é uma prescrição de como se deve ser mas como se deve agir. Bushidô detalha como deve-se tratar os outros.

Um dilema clássico da ética ocidental é a questão de se é certo cometer um mal pequeno para um bem maior, como mentir em serviço por uma causa ou matar algumas pessoas para salvar um número maior. A filosofia ocidental confere muitas respostas para ambas, da moralidade kantiana (considerar pessoas como fins e não meios) ao utilitarismo de Mill (o bem maior para o maior número de pessoas) à completa rejeição de Nietzche da moralidade tradicional (mais complexa do que eu poderia resumir numa simples frase) (NT.: Mas eu usaria “Não existem fatos. Apenas versões dos fatos.”), mas todas reconhecem o conflito e tentativa de resolvê-lo. Bushidô não considera um conflito existir nessas instâncias pois a honra do samurai não é para si ou um senso de moralidade, mas seu papel na sociedade.

Se um samurai é ordenado a mentir por seu senhor, seu dever o compele a seguir as ordens, mas não está em conflito com sua honestidade – está em conflito com a de seu senhor, e seu senhor suporta o peso do pecado. Igualmente, se o samurai se recusa a seguir a ordem, mesmo ao ponto de enfrentar execução ou oferecer seu seppuku, não é porque sua honra não o deixaria mentir (embora a mentira possa lhe parecer desagradável) mas porque seu dever para com seu senhor não o permite assistir seu senhor participar de um ato de desonestidade. De fato, notem que a tabela de honra na página 91 diz que o samurai pode até ganhar honra por obedecer tal ordem (seguir ordens apesar de prejuízos pessoais) – ele não perde honra até o ponto esperado para servir de exemplo aos outros, o que inclui seu próprio senhor.

Coragem é a única virtude do bushidô que se foca no si próprio, mas é necessária. À medida que cinco virtudes especificam como um samurai deve se comportar entre os outros, o samurai se torna bastante vulnerável. Não há indícios de conspiração entre as cinco virtudes sociais do bushidô, e uma delas (sinceridade) ordena que o samurai se entregue totalmente ao que faz – não pode haver meias medidas. Portanto, render-se aos planos de um sistema ético, e um sistema ético que ordena seguir a livre vontade dos superiores a você e não a sua própria, é um panorama aterrorizante. Coragem deve acompanhar as virtudes para ver através delas, ou elas são insignificantes.

Finalmente, chegamos à honra. Honra é uma virtude social (ela descreve o caráter das ações de alguém) e virtude pessoal (descreve o caráter de alguém). Também é a mais difícil de definir. Isto porque honra não é um conceito intelectual; pois honra social e pessoal existem fora do intelecto. Não se pode discutir a honra, apenas seus pontos. As pessoas podem abdicar da honra ou rejeitá-la, mas toda pessoa reconhece sua própria honra ou falta dela. A sociedade reconhece a honra, a concede ou a remove. Lá está todo reflexo de ações e motivações, mas não, curiosamente, a discussão – a honra pode ser debatida mas a conclusão do debate não pode e não mudará a honra pois ela é separada da discussão: ela já aconteceu e o debate é só uma tentativa de entender o que ocorreu. A honra pré-intelectual é a chave final para o bushidô: honra pode mudar em resposta ao mundo, mas nunca em resposta ao samurai; se honra é relativa, não é manipulável.

Assim, temos o entendimento do bushidô como um sistema ético que guia um samurai pela sociedade. O samurai que segue o bushidô tem a coragem de seguir uma compreensão honrada da retidão moral direcionada pelas cinco virtudes sociais que formarão cada e toda ação sua.

O Que é Shouridô?

Está tudo bem quanto aos propósitos de entender o bushidô, mas e o shouridô, o novo código moral? Embora eu não tenha sido capaz de encontrar uma tradução, uma tradução possível poderia ser “o caminho da vitória”, embora “conquista” ou “triunfo” possam ser apropriados (agradecimentos a Dan Zelitch, professor inglês que vive no Japão, por ajudar com a tradução). O nome nos diz tudo o que precisamos saber sobre shouridô: seu propósito é ajudar o seguir. Enquanto bushidô pretende ajudar o samurai a ajudar os outros, o shouridô serve ao si.

As sete virtudes do shouridô são bem explícitas quanto a isso. Diferente do bushidô, apenas uma das virtudes (controle) lida com os outros, enquanto cinco (determinação, intuição, conhecimento, perfeição e força) lidam com o si. Uma sétima (vontade) lida com a implementação dessas virtudes negras. Um seguidor do shouridô não serve ou protege aos outros, por dever ou qualquer outra razão, mas os controla pondo-os a seu serviço. Ele não busca força interior para implementar essas virtudes – tal força é todo o discurso do shouridô. Ele só precisa da vontade de seguir o caminho.

Shouridô ou Bushidô? Ou Shouridô e Bushidô?

Tendo definido shouridô e bushidô como dois sistemas éticos e anti-éticos, podemos ao menos compará-los. Superficialmente, eles são inteiramente contraditórios: shouridô é um guia para servir a si mesmo, enquanto o bushidô é um guia para seguir a outros. Bushidô é um objetivo para se trabalhar e uma trilha rumo a um objetivo, enquanto shouridô são mandatos de poder. Parece impossível seguir ambos. Afinal, pode-se apaixonar-se por um ladrão e lidar com ele de uma posição de força? Pode-se controlar um oponente enquanto se estende a cortesia? Ou pode?

Claro que sim. Um pai deve ser forte com seu filho, mas compassivo: um aviso severo para não brincar com fogo, e uma punição se a regra é quebrada, são atos de força mas são feitos com compaixão, para impedir que a criança se queime. Um senhor comanda seus vassalos, controlando-os mas mostra sua apreciação a eles estendendo-lhes cortesia. As Virtudes não são inatamente contraditórias.

Esta é a interessante natureza das filosofias opostas. É possível seguir shouridô e bushidô, mas apenas em modos específicos. Um comandante de exército que seja ordenado a resolver uma disputa de fronteira com um clã vizinho pode se consultar com conselheiros políticos para obter conhecimento da disputa, meditar sobre a natureza da disputa para ganhar conhecimento das agressões legítimas e ilegítimas do outro lã, e manipular um representante do clã inimigo para controlá-lo e forçar um acordo de paz, tudo porque ele é determinado em resolver a disputa sem sanguinolência. Ainda que para fazê-lo ele tenha cumprido seu dever para com seu senhor, estendido compaixão para com seus soldados e os de seu inimigo, e demonstrado honestidade, sinceridade e honra em cada oportunidade. Este é o resultado mais honrado do que o que se obteria sem o shouridô.

Ao mesmo tempo, um samurai que siga apenas o shouridô teria resolvido a disputa do território por força de armas, controlado as cortes para resolver a disputa a favor de seu clã ou determinado a continuar a luta mesmo com dois lados feridos até que o resultado fosse o desejado, e todas as possibilidades são muito mais fáceis de se conceber do que a intrincada dança exigida para intercalar shouridô com bushidô.

Pode-se seguir shouridô e bushidô, mas é uma linha tênue, uma trilha difícil escarpa a cima com uma grande queda para ambos os lados.

Shouridô e Bushidô no Seu Jogo

A primeira coisa que um personagem deve fazer ao incorporar essas filosofias e esquecer as regras. Ambas filosofias descrevem ações, e as mecânicas são bem capazes de refletir essas ações. As Vantagens e Desvantagens Dark/Paragon/Failure/Consumed podem ser escolhidas após o personagem ser criado, mas devem ser escolhidas em resposta ao personagem criado, não determinar que personagem será criado.

Um personagem que siga o bushidô está tentando se compor pelos padrões da sociedade, e só haverá normalmente uma ação correta, ou ao menos um objetivo correto. Um personagem que siga o shouridô está tentando melhorar e utilizar sua força e poder. Com tal, as duas são melhores intercaladas usando o bushidô para determinar o fim e o shouridô para determinar os meios. Shouridô pode fornecer e abrir a mente do personagem a opções que o bushidô jamais consideraria, mesmo que o bushidô as favoreça ou seja neutro a elas. Jogar com um personagem honrado com shouridô é quase transformar o shouridô numa ferramenta no arsenal do personagem.

O Mestre deve usar a tabela de honra na página 91 como guia para determinar a honra do personagem. Note que algumas das ações do personagem causarão ganho e perda de honra; isto é algo bom. O personagem ainda é honrado, afinal, mas dificilmente puro. Muito provavelmente, a honra do personagem ficará entre 3 e 6, honrado, mas raramente exemplar (positiva ou negativamente).

É agora que a vantagem Dark Paragon realmente brilha. Esforçando-se para seguir o bushidô, o personagem tem um motor de honra regular, mas Dark Paragon permite que ele sacrifique esta honra em serviço para… Bem, mesmo em serviço a esta honra. Como narrador, isto fornece uma maravilhosa oportunidade de interpretar um herói decadente. Shouridô é uma ladeira a baixo onde o PC começa a confiar no uso dos benefícios de sua Dark Paragon, fica cada vez mais fácil para ele pensar “Vou compensar esta perda de Honra depois.” “Não há nada de errado com minha Honra caindo a 2; o ganho de Honra é muito maior quando ganhá-lo.” O Mestre deve fornecer situações regulares de tentação para permitir que o personagem se arraste.

O confronto mais interessante neste ponto raramente é uma acusação mas um contra-exemplo. Um personagem que ceda ao shouridô é melhor comparado com um personagem que tenha seguido estritamente o bushidô. O personagem do bushidô pode ou não julgar o personagem que cedeu ao shouridô, mas se o personagem do shouridô tem ainda alguma honra restante ele mesmo fará a comparação.

É claro, é possível que o personagem do shouridô mantenha sua honra apesar de suas filosofias contrárias. Afinal, se a vontade e determinação do personagem são fortes o bastante ele não deveria ser capaz de seguir ambas? Não seria esta o estágio final de perfeição e realização da honra?

Pode ser, se alguém realmente segue ambas, e quanto mais se usa o shouridô mas difícil isto se torna. Lembro-me de uma velha revista em quadrinhos Nintendo Power sobre Legend of Zelda. Embora os primeiros videogames se focassem na recuperação da Triforça do Poder de Gandalf, e o desenho animado fizesse uso regular da Triforça da Sabedoria de Zelda, nos quadrinhos foi incluída uma terceira Triforça usada por Link: a Triforça da Coragem (faz sentido do porque serem as “Triforças” agora?). Nesta história em quadrinhos, Link realmente derrotara Gannon e ganhou a Triforça do Poder, que começou a corrompê-lo. Na conclusão da história, foi revelado que ele havia perdido a Triforça da Coragem sem sequer notar, que se entregou para Zelda. O que ela disse, embora fosse num pastelanesco gibi mercadológico sendo lido por um garoto de sete anos foi tão relevante e verdadeiro que jamais o esqueci:

“Aquele que confia apenas no poder jamais alcançará a coragem.”

Shouridô é o caminho do poder. Quem confia em seu poder apenas não pode atingir a honra. O poder deve servir à honra. No fim não há ato de equilíbrio possível, não importa o que as mecânicas digam. Um bom Mestre em algum momento fará o jogador escolher: Sua honra ou seu poder.

Este é um conto que vale a pena contar.

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NTs Gerais:
  • “Bushidô” e “Shouridô” aparecem grafados com acentos para indicar entonação típica japonesa dessas palavras, que soam como se o “o” final estivesse duplicado ou seguido por um “u”. Isto não aparece no post original, creio que por não haver acentos no idioma inglês.
  • Em vários momentos, minha tradução passa longe dos termos oficialmente usados. Espero que me perdoem por isso. XD
  • Os termos do sistema não foram traduzidos, mas constam em itálico. Bem como todo termo em Inglês que não foi traduzido, mas deixado no original… Conforme manda a ABNT.
  • Novamente, este texto foi traduzido com autorização de Dace e Alex (acho) do blog The Celestial Agonies.

 

Por Alex Jacobs
Traduzido por Thiago Hayashi
Fonte: http://l5rrpg.blogspot.com/2011/06/philosophies-of-bushido-and-shourido.html

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3 Comments
  1. Cada vez mais o povo fica me deixando babando por L5R…
    Quem vai narrar um jogo? =]

    • Bom, eu estou narrando um jogo pelo RRPG. Tb devo iniciar uma mesa este domingo no evento da Taberna Conclave.

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