Ferimentos graves e os vários tipos de dano em D&D

No início era o dilema do gigante que morria com o dedo espetado. Não importava seu tamanho e robustez, uma furada no polegar era mecanicamente idêntica a um ataque em qualquer outra parte do corpo: o dano era o mesmo e, a conseqüência última, a morte. Então veio a grande resistência dos heróis a ferimentos absurdos conforme avançavam de nível e tudo ficou heróico demais.

Para o alívio de todos, apareceram as novas edições do D&D, nas quais os pontos de vida não eram uma simples medida da resiliência; representavam também (e, mais importante, acima de tudo) o cansaço, o desânimo e a capacidade de diminuir a letalidade dos castigos recebidos. Em suma, a obstinação do personagem em continuar lutando.

Vendo por este lado, tornam-se compreensíveis alguns dos novos poderes de cura até mesmo para os veteranos no sistema, justamente para quem eles são tão estranhos. Palavras de inspiração reacendem aquela chama tremeluzente no peito dos guerreiros, as majestosas os enlevam a feitos sobrehumanos. Inclusive os pontos de vida temporários ganham uma explicação plausível que envolve ímpeto, perseverança ou sorte. Ou uma mistura dos três.

Difícil mesmo de explicar para este pessoal são os pulsos de cura e sua capacidade assombrosa não apenas de restaurar um personagem por completo, como de restaurarem-se igualmente após algumas horas de descanso. Uma parte da magia contida naquela velha frase “precisamos descansar antes de prosseguir” parece ter se perdido e as regras (ou o desafio) em si ficaram um tanto desacreditadas.

Ou talvez não.

Sem querer aprofundar no tema, faz-se necessário constatar o óbvio: alguns dos paradigmas do jogo mudaram (dizem, inclusive, que para não mudar nada), chegando até a se inverterem. E os pontos de vida são um exemplo perfeito desta situação. Responda rápido: quem está em piores condições, um personagem com 1 ponto de vida e todos os pulsos de cura ou um com todos os pontos de vida e somente um pulso de cura?

Mais do que nunca, os pontos de vida significam a disposição do personagem, não necessariamente o tamanho de suas feridas abertas. Um golpe bem sucedido, que cause um elevado dano, é possível de ser descrito pelo mestre como um talho irritante ou como um ataque passou perigosamente perto, exigindo muito do personagem para não ser ferido; porém nada além disto. Então, nesta linha de raciocínio, pontos de vida zerados (por mais que as regras digam o contrário) nem sempre indicam inconsciência –em particular durante combates não letais–, podendo ser interpretados como uma rendição incondicional, fuga desabalada ou simples prostração. Na realidade, é a deixa para os momentos dramáticos que sucedem as lutas nas grandes histórias, nos quais os vilões confidenciam verdades terríveis depois de terem caído em desgraça.

Todavia, isto não justifica os pulsos de cura e, sim, a conseqüência dos vários tipos de dano de D&D. Pois não é fácil pensar em outra maneira verossímil de colocar a absurda cena em que um dragão tomba, ferido por lâminas mágicas e bolas de fogo, depois de ter perdido seus últimos pontos de vida pelo escárnio cruel (vicious mockery, PH2 pág.69) do bardo. Morreu do coração ao ouvir a mãe sendo xingada, brincam alguns. O fato é que não precisa ser assim.

E se o dano psíquico é capaz de abalar a convicção de um personagem sem fender sua pele em feridas horríveis, também o são os outros tipos de dano, mesmo o mais comum, como o corte resvalado da espada. Neste sentido, de que boa parte dos ferimentos é puro trauma momentâneo, as recuperações milagrosas que sucedem um descanso breve não são assim tão descreditadas.

O que dizer, pois, dos ferimentos mais duradouros e incapacitantes? Aqueles que realmente deveriam fazer os heróis não se atirarem em toda sorte de perigo, sob risco de sofrerem aleijos, amputações ou insanidade? A pergunta é: e a recuperação diária dos pulsos de cura? Sendo bem sincero: eu não sei. Não vejo motivo outro para esta regra estar ali (juntamente a marcos, poderes por encontro e muitíssimos pontos de vida) que não uma mensagem de “Vá lá! Lute! Seja um herói! Está feliz, Cidadão?”. E é aqui que entra a única alteração substâncial das regras, para devolver aos mestres o consagrado método de manter os jogadores cuidadosos com a vida de aventuras. Lembrando-os de que, apesar de tudo, os personagens continuam mortais.

A regra variante de Ferimentos Graves diz que metade de (ou todos) os pulsos de cura gastos para recuperar pontos de vida durante um descanso breve não retornam depois de um longo. Ao invés disso, no final deste período, o personagem deve realizar um teste de resistência. Um resultado de 10 a 19 significa a recuperação de 1 pulso de cura, ou 2 para um resultado igual ou maior que 20. Um personagem sob os cuidados de alguém treinado na perícia Socorro realiza dois testes de resistência e escolhe um deles. A taxa de recuperação ou o número de pulsos de cura não recuperados com facilidade pode ser maior ou menor, dependendo da gravidade do ferimento (i.e. de acordo com a determinação do mestre). Se você quer tornar o jogo mais cruel e desafiador, assuma que o único modo de recuperar pontos de vida naturalmente é através dos pulsos de cura. As regras dizem que um personagem sem pulsos de cura que receba um dano neles, como quando falha em certos desafios de perícia, deve sofrer 1 ponto de vida por nível ao invés. Esta variante considera que o número de pontos de vida perdidos é igual a 1/4 do total.

Afinal, o dilema do início fica claro: melhor estar esbaforido, mas cheio de força interior, que com o fôlego renovado e mal sustentando-se sobre as próprias pernas.

Artigo extraído das Campanhas Inacabadas.
Enviado por Melgalian
Publicado originalmente no antigo portal em 30/09/2009  (1679 leituras)

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3 Comments
  1. Interessante essa abordagem…

    Particularmente eu acho que de maneira geral, na 4E ha muito recurso in game (na regra) que permite que o personagem permaneça vivo e o dano geral dos jogadores e ate dos npcs demasiado pequeno….. o que torna o combate pouco criativo e lento…

  2. A velocidade do combate pode não ter tido grandes alterações… mas as opções foram incrementadas, acho que os combates na 4ª edição apresentam muito mais dinamica, interação e abertura para criatividade que na edição anterior

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