Um Sonho de 3 Noites (com ilustração)

17 DE MARÇO 1925.

Os pés, calçados por sapatos de couro velhos e um tanto gastos, porém muito bem engraxados se afundavam na fofa grama salpicada de alguns lírios brancos. O banco se erguia sobre a grama que já havia lhe coberto os pés há alguns anos, e nele repousava o escritor. Seu paletó extremamente alinhado indicava uma a certa altivez, que exibia um contraste estranho com a inclinação de sua coluna fazendo com que seu rosto se escondesse quase que totalmente por trás do livro cujo título em inglês significava “A Interpretação dos Sonhos de Sigmund Freud”.

O que o escritor ignorava era que o gramado no qual residia o banco de praça consistia na verdade num circulo verde de no máximo cinco metros de diâmetro. Além disso, havia apenas um solo áspero e úmido feito de pedra negra que se erguia de um mar parado e morto. Ao longe quatro bestas de tamanho titânico dormiam nas sombras de um crepúsculo interminável com suas barrigas voltadas para um céu manchado de nuvens vermelho-sangue a oeste e completamente negro a leste. Cada besta jazia num ponto cardeal e a única delas que jazia completamente oculta nas sombras era a do leste. O odor de enxofre era pesado e sufocante, mas isso não parecia incomodá-lo.

– Pequeno Howard… – Tentou um velho mascate se aproximando, as vestes semelhantes a do escritor, no entanto ele carregava uma grande mala de couro aonde residiam os diversos artigos que ele deveria vender. O escritor apenas o ignorou, assim como fez com as bestas que dormiam no mar. – Você não pode me ignorar, filho.

O escritor apenas virou a página.

– Howard! Como ousa ignorar seu próprio pai? – Insistiu o mascate.

– Você não é meu pai – finalmente respondeu Howard, o escritor.

– Como ousa? – Revoltou-se o mascate.

– Meu pai está morto[1]. – Concluiu o escritor.

– Sim. Morto. Abandonado num manicômio. Tinha tanta vida pela frente… Eu queria ver você crescer Howard, ser um pai pra você. Mas as dores da loucura roubaram minha alma, e lavaram minha mente deixando apenas um corpo inerte. – Dramatizou o mascate levando a mão ao coração na parte final de sua fala.

– Meu pai morreu de sífilis. Era um mascate qualquer que abandonou a mim e a minha mãe. Não me perturbe mais. – Respondeu Howard sem nem mesmo tirar os olhos do livro.

– Ao invés de me insultar você deveria ouvir o que tenho a lhe dizer. – Declarou o mascate.

– Creio que nada de proveitoso pode vir de você – rebateu Howard.

– Então é hora deles acordarem – concluiu o mascate.

Um terremoto sacudiu a ilhota de pedra onde os dois estavam. Olharam para o leste quando a maior das criaturas se ergueu nas sombras. Era impossível vê-la oculta nas densas trevas da noite macabra que vinha do leste, exceto por poucas linhas de sua colossal silhueta. Era terrível saber que ela estava viva, ainda mais agoniante saber que a criatura que se erguia do mar olhava para ele.

Abriu os olhos então em sua cama enquanto a porta era martelada por uma voz impaciente que lhe chamava:

– Senhor Phillips! Senhor Phillips!

Howard levantou-se tateando a cômoda cheia de papéis os quais derrubou alguns em busca de seus óculos. Os colocou e foi na direção da porta para em fim abri-la.

– Bom dia, senhor Phillips – saudou a gorda senhora com cabelos grisalhos que prontamente lhe entregou nada menos que quinze cartas. – O correio passou esta manhã, e sinceramente, eu gostaria de saber por que o senhor recebe tantas cartas!

– Dia, senhora Longroad. – Respondeu Howard para início de conversa. – Bom, eu me comunico com muitas pessoas com frequência, como bem disse a primeira vez que a senhora perguntou.

– Olhe, senhor Phillips. – Começou a senhora Longroad.- Concordei em ceder esse apartamento para solteiros para o senhor por apenas vinte dólares por mês, pois a princípio me pareceu ser uma boa pessoa. Não fedia como os sujeitos que moram por aqui em Red Hook[2] e estava bem vestido de mais para ser um desses gangsters de quem tanto falam por aí. Mas o senhor quase não sai de casa, vive a portas e janelas trancadas e, agora essas cartas.

– Eu escrevo para algumas revistas, senhora. E me comunico com alguns leitores e outros escritores. – Explicou Howard.

– Eu não creio nisso. Deve estar sendo procurado e se esconde aqui. É apadrinhado de algum mafioso, ou coisa do tipo. – Acusou a senhora colocando o dedo na cara do escritor. – Não cheguei aos meus cinquenta anos sem prestar atenção nas coisas, Phillips, e eu tenho os dois olhos bem abertos!

– Senhora – começou Howard. – Não acredita que se eu fosse melhor apadrinhado, eu teria menos dificuldades de pagar esse aluguel “pechinchado” como a senhora diz?

A gorda senhora parou um pouco para pensar, mas não diminuiu sua fúria, apesar de dar meia volta e caminhar pelo corredor que mal lhe cabia ela ainda gritou:

– Lembre se disso, eu tenho os olhos abertos! E ainda enxergo bem!

Ele fechou a porta e a paz voltou a reinar. Leu as cartas com cuidado, verificou a quantidade de tinta no tinteiro e sacando de uma folha em branco começou a escrever sobre a escrivaninha tomada de livros, folhas de rascunhos marcadas com café no qual consistia seu mundo, até que o almoço do senhorio começou a incomodar sua concentração. Ele esquentou então um pouco d’água, fez um litro de café e mastigou uns pedaços de pão velho: havia almoçado.

A noite caiu. O café estava frio. A vela já estava no fim ainda assim ele usou um dos seus últimos fósforos e a acendeu. Nas sombras dançantes ele sabia que residiam coisas que vinham de muito longe para perturbá-lo. O calor às vezes lhe forçava abrir a janela, então o cheiro pútrido dos portos a menos de duzentos metros de distância invadia o quarto. Os sussurros vindos da rua, a música abafada ao longe. Ele sabia que lá fora os homens perversos daquele lugar conspiravam contra a vida e contra os bons modos. Ele não mantinha a janela aberta por mais de cinco minutos. Preferia o calor e os fantasmas das sombras ao cheiro de peixe podre que vinha da rua. Quando a fome bateu, ele apenas tomou o café gelado, pois por mais vontade que tivesse de fazer mais, devia guardar para amanhã, afinal não havia muito. Após ler novamente um livro de astronomia, ele adormeceu.

 

 

18 DE MARÇO 1925

– Como chegamos aqui? – Começou o mascate.

– Eu estou sonhando e você está morto. – Explicou Howard.

– Sabe que quando desperto essa sentença não teria sentido algum, não é? – Brincou o mascate.

– Deveras – respondeu seco o escritor.

O mascate parou e observou o livro que Howard lia dessa vez: “A Origem das Espécies”, de Darwin[3].

– Porque perde seu tempo com estes livros hereges, meu filho? Nunca conseguirá lecionar numa boa escola se for visto lendo essas blasfêmias!

Howard não respondeu.

– Não conseguiria mesmo que não lesse essas coisas, afinal não tem uma boa faculdade. Aliás, não tem faculdade! – Acusou o mascate.

– E o que um mascate entende de um bom curriculum? – Rebateu Howard.

Ele sentiu respingos de água acertar seu rosto e o livro. Olhou por cima dos óculos e viu que o mar dessa vez estava agitado, mas isso parecia não abalar as criaturas que dormiam no horizonte.

– Uma grande tempestade se aproxima filho – disse o mascate. – Se ao menos você ouvisse o que tenho a dizer…

– Porque não se concentra nos seus próprios negócios? – Respondeu Howard olhando por cima do livro e percebendo que um tsunami se aproximava fazendo com que ele despertasse novamente em sua cama.

Desta vez as batidas foram mais suaves. No entanto Howard atendeu com a mesma pressa e urgência do dia anterior. Quanto antes atendesse a porta mais cedo dispensaria a senhora Longroad.

– Bom dia, senhor Phillips.

– Bom dia, senhora Longroad – retribuiu Howard.

– Hoje o correio trouxe apenas cinco cartas – disse a senhora entregando as cartas ao escritor. – Meu recorde foi três, num mês!

– Obrigado – agradeceu Howard levando novamente à mão a maçaneta para fechar a porta, mas como ele previa a senhora continuou a falar:

– Sabe que a sua vizinha, Mary, me disse que acompanhou a posse do novo presidente pelo rádio?

– Interessante, não? – Ele tentou fingir interesse.

– Ela me chamou para ouvir um pouco na casa dela. Disse que foi uma coisa bonita de se ver. Nunca fui com a cara desse Coolidge, mas é um republicano, afinal. O primeiro presidente a ser empossado durante uma transmissão de rádio, ela me disse.

– Um fato bem interessante – ele tentou. – Senhora Longroad eu—

– Ela é solteira – começou a senhora interrompendo a tentativa do escritor de se livrar dela. – Um pouco mais nova que você, mas parece ser uma boa mulher. Trabalha no escritório de um estaleiro aqui perto, veio do interior. Deveria chamá-la para tomar um café qualquer dia desses.

– Eu sou casado – respondeu Howard um tanto seco.

– Me desculpe – consertou a senhora Longroad um tanto constrangida. – Sabe, depois de ontem, eu pensei um pouco melhor sobre a coisa das cartas. Realmente fui um pouco além dos limites, como disse, já vivi o bastante para ficar calejada. Apenas achei que apresentado vocês faria um favor. O senhor fica tão solitário aí dentro desse quarto, achei que apenas precisava de uma motivação para sair!

– Agradeço – cortou ele já fechando a porta.

– Mas – insistiu ela. – Onde está sua esposa?

– Teve que se mudar devido ao seu trabalho. Eu estou aguardando ser chamado para uma entrevista.

– Bom, e eu que achava as cartas estranhas – comentou a senhora – uma mulher que trabalha e ainda mora longe de seu homem. Que surpresas mais virão do senhor, hein, senhor Phillips.

– Bom dia – e finalmente fechou a porta.

Então ele recomeçou seu ritual: abriu as cartas, leu-as. Uma delas era o cheque de quinze dólares referente ao seu pagamento pela publicação de contos. Guardou-os na gaveta da escrivaninha e tomou uma folha em branco para iniciar umas respostas. No entanto ao verificar o tinteiro viu que o material do qual eram feito seus sonhos havia acabado. Vestiu roupas de sair, colocou um chapéu e trancou a porta.

Caminhou mais de meia hora até a loja de utensílios na qual conseguiu por dois dólares um frasco de tinta. E quando retornava uma voz o chamou:

– Howard Phillips Lovecraft!

Ele se virou. Viu um homem igualmente alinhado, porém usava um chapéu branco fazendo contraste com seu paletó preto. Era um homem atlético, percebia-se pelos ombros largos e o peito farto que nem mesmo o casaco disfarçava.

– Robert![4] – Respondeu Lovecraft.

– É um prazer imenso revê-lo! Amigo – Disse Robert apertando a mão de Lovecraft com tanta força e sacudindo tão rápido que por instantes o escritor acreditou que a intenção do amigo era arrancá-la.

– Mas que diabos faz em Nova York, meu caro – surpreendeu-se Howard. – Está um pouco longe do Texas, hein!

– Ah – suspirou. – Você sabe que eu tenho uma alma selvagem. Precisava viajar. Expandir meus pulmões com ares diferentes! Depois que me falou sobre a situação com a Sonia tive que vir lhe ver, além disso, tinha que lhe contar e mostrar algo pessoalmente.

– Não há uma situação com a Sonia – concertou Lovecraft.

– Claro que há. Eu lhe avisei! Uma mulher mais velha, Howard! Vai querer ser sua mãe! Mandar em você e ser dona do próprio nariz!

– É apenas temporário – insistiu Howard.

– Ah, amigo cale-se. Veja aquele Ford T “New Model” Tudor Sedan do outro lado da rua, é meu! – Apontou Robert. – Vamos até a quinta avenida tomar um bom licor enquanto falamos do mundo como se soubéssemos todas as respostas!

E então fizeram uma viagem tranquila até a cafeteria, Robert se perdera algumas vezes no caminho, mas só porque não quis escutar as dicas exatas que Howard lhe dava. A cafeteria era simples. Um lugar apertado numa das ruas próximas a Quinta Avenida. Aconchegante, apenas algumas mesas de madeira, e um barman simpático.

– Aquele bairro realmente é tão nojento quanto às descrições de seu conto, meu caro, não sei como ainda consegue morar lá. – Disse Robert girando seu café com uma pequena colher.

– Temo que não tenha muitas opções. Mas é provisório. – Mentiu Lovecraft.

– Já vai fazer um ano, meu caro!

– Não é tão ruim assim.

– Não? Eu sinto sua agonia no conto que escreveu sobre o lugar.

– Não vamos comparar a ficção com o real. Use o bom senso.

– Você vive verdadeiramente o Horror em Red Hook, meu caro! Até o nome desse lugar me dá arrepios. Imagino um gancho molhado com sangue escorrendo. Corpos espalhados… Isso daria um bom conto.

– Na verdade este Hook é “canto” para os ingleses que batizaram o lugar.

– Pensando bem, ingleses também me dão arrepio.

E riram.

– Aguçou minha curiosidade ao dizer que tinha algo para me mostrar. – Confessou Howard aproveitando para mudar de assunto.

– Sim – disse ele e começou a procurar algo em sua pasta de couro. Então retirou um encadernado que jogou sobre a mesa. Um periódico de Harvard que não surpreendeu Lovecraft.

– Parei de receber esses periódicos quando me mudei. Lembrou-me que preciso atualizar meu endereço de cadastro – comentou Howard.

– Há um anúncio aí – recomeçou Robert com empolgação – de um astrônomo chamado Hubble[5]. Ele descobriu outras galáxias em Andrômeda!

– Como assim uma galáxia em Andrômeda? Em Andrômeda há uma nebulosa! Não se confunda – começou Howard logo corrigindo o amigo que não era tão aficionado por astronomia quanto ele.

– Andrômeda, segundo esse Hubble, é apenas uma das galáxias que existem no universo! Ele descobriu um conjunto de galáxias que foram batizadas com seu nome, inclusive.

Lovecraft ficou perplexo. Folheou o encadernado e leu alguma coisa por alto apenas confirmando o que o amigo dizia.

– Você tem ideia do que isso representa? – Declarou o escritor.

– Eu não sou um astrônomo, nem mesmo sei metade do que você sabe, amigo, mas tenho ideia da grandiosidade dessa notícia.

– Já me surpreendia com a quantidade de estrelas que havia no céu… Se cada uma possuir um sistema de planetas…

– Imagine então quantas estrelas há nessas outras galáxias?

Howard pensativo recostou na cadeira.

– E os sonhos? – Inquiriu Robert curioso.

– Nada de mais. Apenas sonho que estou com os Antigos.

– “Nada de mais” seria a última expressão que eu usaria para definir qualquer um de seus sonhos, Howard – declarou Robert elogioso.

– Todo mundo tem pesadelos.

– Todo mundo tem pesadelos, amigo, mas você tem revelações, tem epifanias oníricas!

– Se fosse tudo isso, não estaria publicando na Weird Tales e sim em periódicos de Harvard – confessou Lovecraft.

Um silêncio chato se fez. Então Howard decidiu quebrar o gelo:

– Mas e suas histórias de faroeste?

– Ah, meu amigo – recomeçou Robert -, não tenho mais vontade de escrevê-las. A princípio admito que as escrevia com empolgação. Hoje apenas o faço pelo dinheiro. O velho oeste, heróis rumando para um mundo ainda inexplorado… Mas esse tema já está tão batido quanto as estradas para o Oeste que agora já são largas e seguras…

– E o que tem em mente?

– Estive lendo sobre mitologia celta[6], para uns contos de terror e fiquei pensando em umas coisas…

– Porque não leva isso em frente?

– Um dia quem sabe…

– Sabe o que você não devia esperar? Para escrever mais sobre os antigos. Devia escrever algo mais direto dessa vez. Algo sombrio e assustador que criasse sua marca!

Howard inspirou:

– Creio que algo assim necessite de uma revelação onírica maior do que todas que já tive – declarou Lovecraft.

As conversas se estenderam por algumas horas, até que Robert decidiu que queria estar fora do estado antes do anoitecer para estar com sua mãe antes do fim de semana.

Ao chegar em casa Howard apenas se trocou e deitou.

Ao fechar os olhos ele sentiu uma presença, algo o encarava e o ameaçava com o olhar. Um olhar agonizante. Ele ouvia ruídos estranhos, não altos de mais para chamar sua atenção completamente, nem baixos o suficiente para passar despercebidos, mas sim ficar no limiar entre o real e o imaginário fazendo com que ele se preocupasse se realmente estava ouvindo aquelas coisas.

Abriu os olhos, encarou então o breu do teto. Era lá que residia o olhar da coisa que lhe observava. Ele não podia ver. Estava oculta nas sombras, a razão não podia deduzi-la, mas ele sentia o olhar, e reagia a cada ruído não ouvido nos cantos sombrios de seu apartamento.

Acendeu a vela e amaldiçoou o senhorio pela não instalação da rede elétrica no seu apartamento. Naquela situação ele também não estava em condições de negociar.

Apagou a vela.

Fechou os olhos novamente e a coisa nas sombras voltou a encará-lo. Um medo agoniante que ia crescendo dentro de sua cabeça, forçando seus olhos a abrirem novamente.

Bam! Bam! Bam!

Ele escuta. Seu coração quase salta pela boca. Ele se acalma, é só a senhora Longroad na porta. O que a velha poderia querer àquela hora?

Quando ele abre a porta, ele a reconhece. Seu vestido, o cachecol de pele que lhe cobria o pescoço e o chapéu plumado sob o qual se apresentava o rosto maquiado de sua amada Sonia de malas na mão.

– É uma senhora muito impetuosa essa sua senhoria, hein – ela disse.

Eles se abraçaram e se beijaram. Apesar da boa surpresa, Howard não se mostrou muito feliz em vê-la. De certo, recaiu um desconforto sobre sua mente. Lembrava-se das cartas de suas tias convidando ele a voltar para Providence, ao mesmo tempo em que se recordava da sua má visão de suas tias sobre “mulheres de negócio”, caso de Sonia.

– Decidi que não vou deixar meu homem sozinho nessa cidade grande – explicou.

Ela se trocou, e deitaram juntos na pequena cama de solteiro. E quando acordaram estavam de volta ao espaço apartamento de Sonia, longe de Red Hook. Sonia já não era mais velha que ele, e sim mais nova. Não era mais uma mulher de negócios, e sim uma dona de casa comum que vinha lhe trazer as cartas.

– Chegou o cheque de Harvard, querido – ela dizia. Mas ele se interessava mesmo pelo periódico que ostentava seu nome num dos artigos: “Prof. Lovecraft descobre segredos da criação do universo!”.

– Isso não é verdade – ele constatou.

– Claro que é – diz Sonia lhe dando um caloroso abraço. – É tudo que você merece.

E ela olha em seus olhos com o olhar penetrante o qual ele deseja, mas agora ela está molhada. Molhada com água do mar, ele sabe, sente o odor fétido de peixe. Moluscos caminham pelo chão da casa. Uma lula começa a agarrá-lo pelas pernas e quando ele percebe está mergulhando num mar denso, cheio de moluscos cefaloides de todos os tipos. Eles agarram seus membros e começam a rasgar sua pele com ventosas e garras.

Ferido, com suas roupas em trapos, ele emerge se arrastando pela praia de rocha sólida e negra ainda com criaturas rasgando e puxando sua pele.

– Pai – ele chama pelo mascate que está diante dele.

– Se você pelo menos ouvisse o que tenho para dizer…

– Pois diga.

O mascate estende a mão ao escritor que se levanta. As criaturas em sua pele murcham e caem, suas roupas se reconstituem com seus fios se entrelaçando por mágica. Não há mais dor.

– Ele te chama – avisa o mascate.

– Quem?

– O que dorme.

E então ele olha para o horizonte e sabe que ele está lá, o morto que aguarda.

– Eu não posso fazer isso!

– Acabará perdido na prisão que você mesmo criou. Acabará inerte e solitário! – Ameaça o pai.

– Não tenho medo da solidão. Esse caminho eu mesmo escolhi! A loucura não me assusta. Conheço bem os labirintos da minha própria mente!

– E nunca será lembrado!

Um tsunami invade a praia elevando o nível do mar dezenas de metros acima de sua cabeça, e quando ele percebe as criaturas já estão envolta do seu corpo num cardume macabro de moluscos cefaloides de todos os tamanhos lhe rodeado. O escritor se contorce e debate, mas é inútil.

Ele se levanta de uma cama de hotel barata. O lugar fede a peixe. Ele olha para o lado e vê uma prostituta de um dólar nua. O odor da maconha perde-se no meio do mau cheiro daquela espelunca. Ele sabe onde está: na mesma situação na qual dizem que seu pai surtou. Esse era seu pior pesadelo. Ele abriu a janela: diante de si um penhasco quilométrico cujas ondas quebram aos seus pés violentamente. Uma tempestade apocalíptica assola a terra. Furacões e tufões giram iluminados por raios estrondosos que fazem o cada centímetro do seu corpo vibrar.

Ao longe, no horizonte, ele vê a titânica criatura ereta diante de tanta devastação. Mais antigo que o mundo. Antes dormia agora desperto revela-se diante dele. Suas asas dracônicas se esticam revelando a majestade de seu corpo, sua cabeça cefaloide volta seu olhar ao escritor, encarando-o em ameaça. Os tentáculos se movem sobre seu corpo, tateando o ar.

– Eu não temo o que criei – ele desafia.

– Atenda meu filho, seja o profeta – diz o mascate ao seu lado -, atenda ao chamado de Cthulhu![7]

Acordou ofegante. Todos os papéis sobre a escrivaninha haviam sido jogados no chão, exceto uma folha, na qual estava escrito:

“Ph’nglui mglw’nafh Cthulhu R’lyeh wgah’nagl fhtagn”

 

 

19 DE MARÇO DE 1925

Naquela manhã a senhora Longroad não bateu na porta, nem apareceu durante o dia todo. Isso deixou Howard ainda mais perplexo. Ele anotou o sonho em um rascunho qualquer, apenas para que não esquecesse, e leu novamente o livro sobre interpretação de sonhos que o Freud havia escrito. Por mais confortável que fosse a ausência do incômodo que a senhora Longroad proporcionava diariamente, ele se preocupou e decidiu investigar seu paradeiro. No entanto não a encontrou em sua casa, mas sim no apartamento de Mary, que chorava enquanto ouviam notícias no rádio.

– Senhor Phillips – começou a senhora – uma tragédia aconteceu! Furacões assolaram três estados incluindo o sul de indiana, onde reside a família desse pobre anjo.

– Meu deus! Quando foi isso? – Perguntou ele.

– Durante a tarde e a noite de ontem – ela respondeu. – Falam seiscentos feridos, e mil mortos!

Naquele dia Howard quase não dormiu. Ele sabia que os antigos eram criação de sua mente. Provavelmente uma influência de sua estadia naquele lugar que fedia a peixe podre, sujo e imundo que o aproximava cada vez mais de suas montanhas da loucura. Aquela casa, habitada por fantasmas… Tragédias. O fantasma de seu pai habitava sua mente, e por mais que certo complexo de Édipo o transformasse no seu pior pesadelo, aquela notícia o havia perturbado ainda mais.

Ele viu-se forçado a fazer com que sua racionalidade julgasse por coincidência o morto Cthulhu habitar entre furacões na mesma noite em que eles assolaram três estados no país. É o que uma pessoa normal julgaria. Aliás, isso não passaria nem mesmo pela cabeça de uma pessoa normal.

Mas enquanto ele escrevia suas cartas, os insetos feitos de sombras ainda andavam pelo chão de seu quarto na periferia do olhar, desaparecendo sempre que ele olhava para eles. Tocavam e subiam em seus pés também sumindo em sua mente fazendo-o temer a loucura. Uma pessoa normal não consideraria nem mesmo pensar que não fosse nada mais que uma coincidência.

– E quem disse, Howard Philips Lovecraft, que você é uma pessoa normal? – Lhe contou o mascate a beira do penhasco rochoso sobre o qual residia o banco de praça no qual o escritor estava sentado. Dessa vez ele lia uma edição do jornal Chigago’s Herald Examiner que se vangloriava em sua manchete de ter as primeiras fotos do tornado[8] que assolara os três estados.

E lá ele ficou a beira do abismo aguardando junto com as bestas que dormiam esperando que as estrelas estivessem certas para que pudessem despertar e viver. Assim como escritor que aguardava seu próprio estado de vigília, aguardando acordar para o pesadelo de sua própria realidade.

Ilustração by H-Minus. clique para ampliar.

 

Por TIAGO CABRAL
Conto ganhador do Concurso Rastro de Cthulhu
Ilustração de H-Minus

 

NOTAS

Este conto se passa num dos momentos da vida de H.P. Lovecraft que suas biografias descrevem como o mais sombrio, que propiciou a devida inspiração para os contos macabros que surgiram nessa época, demonstrando inclusive a repulsa do autor pelo lugar onde vivia, como o conto Horror em Red Hook (não disponível em português).

 [1] Não se sabe muito sobre o pai de Lovecraft, apenas que era um negociante que em um momento de sua vida teve um surto psicótico num hotel e morreu num manicômio. Algumas fontes dizem que ele era um negociante, outras que ele era um mero vendedor ambulante, ou mascate. Porém não há informações exatas nesse sentido. Diz-se que sua morte se deve à loucura, mas também é cogitada a possibilidade de que sua doença mental tivesse sido causada por sífilis. Há informações que dizem que, na época da morte de seu pai, a mãe de Lovecraft teria recebido medicamentos para a doença.

[2] Não encontrei nenhum registro sobre o apartamento de Lovecraft em Red Rook, mas seus biógrafos concordam sobre a decadência do bairro e das condições do autor nessa época que serviram de fonte para elaboração das descrições presentes nesse conto. Por tanto, a senhora Longroad, alugadora do apartamento é apenas obra da minha imaginação.

Nesta época, Red Hook era um dos domínios do famoso gangster Al Capone, então não seria difícil que a violência do lugar tornasse as pessoas desconfiadas quanto a estranhos.

[3] Na década de 1920, a teoria da evolução de Darwin já era popular, no entanto seu ensino nas escolas ainda causava polêmica. Em 5 de Maio deste mesmo ano, o professor de biologia John Scopes foi preso por ensinar a teoria de Darwin em sua aula ao invés da teoria criacionista (na qual Deus é o responsável pela criação do homem como relata a bíblia). Isso deu início a uma grande discussão.

Lovecraft nunca chegou a terminar seus estudos, seu grande sonho era ser astrônomo.

[4] Outro fator ficcional neste conto: não se sabe se um algum dia Robert E. Howard se encontrou com Lovecraft em Red Hook, afinal ele morava no Texas e eles se correspondiam basicamente por cartas. É mais possível que se falassem pessoalmente em convenções de jornalismo amador que ambos frequentavam ou em outros eventos do tipo, mas é sabido que Robert gostava de fazer viagens sem rumo de carro, o que torna esse encontro improvável, mas não impossível.

O Ford T citado era um carro lançado naquele ano e era popular. É bem provável que Robert tivesse possuído um nessa época.

[5] Em dezembro de 1928, poucos meses antes do período desse conto, Edwin Hubble (que dá nome ao telescópio que orbita a terra) anunciou a descoberta citada aqui. Lovecraft, apesar de frustrado em sua carreira como astrônomo, era um grande entusiasta da área, e certamente teve acesso a essa notícia que foi tão grande quanto à descoberta de Galileu de que a Terra gira em torno do sol. No entanto esse grande feito só iria repercutir na mídia bem mais tarde, mas é possível que Lovecraft tenha sabido disso antes.

[6] Os estudos de Robert E. Howard sobre mitologia celta resultariam na criação do seu personagem mais famoso: Conan, o bárbaro.

[7] Muitos cultos atuais a Cthulhu dizem que a criatura já existia muito antes de Lovecraft escrever sobre ele, e que o escritor era um profeta. De fato, na obra de Freud que Lovecraft lê no início deste conto é dito que, em tempos antigos, sonhos eram revelações e os que eram capazes de interpretá-los eram tidos como profetas ou magos. Sabe-se que Lovecraft sofria de terríveis pesadelos os quais eram fontes de muitos contos que ele escrevia, o que é a premissa deste conto.

[8] Em 18 de março de 1925 um tornado conhecido como “The Tri-State Tornado” assolou os estados de Indiana, Missouri e Illionis o que completa o conjunto de inspirações que acredito que, a resultado da soma da localidade onde morava, as condições em que vivia e tudo mais citado no conto, serviram de inspiração, mesmo que inconsciente como ocorre aqui, para a criação do conto The Call of Cthulhu que se passa em parte nessa data.

***

 

Share This Post
2 Comments
  1. Puxa, muito legal a ilustração! Fico honrado! =D

  2. Seu texto merece ;-)

Leave a Reply