Como jogar um bom jogo de RPG: Tornando-se um bom Jogador!

Contadores de Histórias

“Um grupo de amigos está reunido para jogar uma sessão de Lenda dos Cinco Anéis. Em determinado momento da aventura, o Narrador diz:

― Vocês estão seguindo pela estrada para Ryoko Owari quando, em sentido contrário, avistam um camponês ancião com uma sacola que parece ser de arroz nas costas.

Um dos jogadores declara:

― Eu saco minha katana e ataco!”

O exemplo acima é, sem sombra de dúvidas, extremo, mas que Narrador nunca viu algo assim em suas mesas de RPG? Eu já vi, muitas vezes…

Outra coisa que já vi foram artigos, inúmeros, com dicas para Mestres de Jogo. Palestras, workshops e até narradores profissionais, especializados na arte de contar histórias. Toda a sorte de coisas que parecem dizer, o tempo todo, que o Mestre é o grande responsável, é ele quem carrega, sozinho, a responsabilidade pela diversão de todos.

Esta pode não ser a mensagem clara, mas é isto que subjetivamente passa ao entendimento de um número consideravelmente grande de jogadores de RPG – a palavra Mestre de Jogo designa uma espécie de animador, um mestre de cerimônias.

Bem, isso é uma grande bobagem. O Mestre é, com certeza, a pessoa responsável pela trama. É ele quem propõe uma história a ser contada e os personagens dos jogadores se inserem nesta história. Também é ele quem, em última instância, é o guardião das regras e deve conhecer melhor o sistema de jogo. Mas os jogadores são responsáveis pelos fios narrativos que compõem a trama. O substrato da narrativa surge das decisões que os personagens deles tomam em jogo. Eles são os responsáveis por contar a história de alguém que faz parte da aventura do Mestre de Jogo. Em outras palavras, jogadores também são contadores de histórias.

Este é, de onde eu vejo, o grande diferencial do RPG em relação a outras modalidades narrativas. Não há, ali, um autor dizendo o que acontece aos personagens e como eles lidam com isso para contar uma história interessante. O Mestre é autor de um horizonte de eventos no qual os personagens se inserem. Os jogadores, de sua parte, são autores da coisa mais importante em qualquer narrativa – as decisões dos heróis. E todos são autores de uma história, embora ocupem papéis diferentes. Autores de uma história que contém, em si mesma, uma série de outras histórias.

O Herói e a Narrativa do Jogador

Não há Mestre de Jogo que consiga contar uma boa história sozinho. O Narrador pode se dedicar para construir um enredo envolvente para o seu grupo de jogadores, criar props, handouts e toda sorte de parafernália lúdica. Inserir fundos musicais em momentos de tensão e até se fantasiar de alguma coisa que tenha a ver com o jogo. Tudo para propiciar uma imersão que é muito bem vinda, mas não acontecerá sem uma disposição dos jogadores para isso.

De fato, todo o trabalho do Narrador para criar a atmosfera certa pode ser jogado por água abaixo por jogadores fazendo algumas piadas nos momentos errados e levando seus personagens a agirem de maneira temerária, tomando decisões que eles certamente nunca tomariam.

É claro que existe mais de uma forma de jogar RPG e não se pode dizer que alguma delas esteja errada, ao menos não do ponto de vista narrativo. Também é claro que você e seu grupo podem se divertir atacando velhos indefesos numa estrada, embora esta forma de diversão possa suscitar algumas dúvidas de caráter. O que nós certamente podemos dizer é o que funciona ou não em termos narrativos. A questão, aqui, é se você conseguirá fazer do seu personagem alguém cuja história valha a pena ser contada.

Neste momento, acredito que caiba bem a seguinte pergunta: o que torna um herói de fato um herói? Quando alguém abandona a mediocridade para se tornar uma fonte de inspiração?

Maui, um exemplo de herói na acepção original.

Maui, um exemplo de herói na acepção original.

Antes de mais nada, devo dizer que herói, pelo menos em seu sentido original, não é necessariamente alguém dotado de caráter irrepreensível e reputação ilibada, como parece ter se tornado o senso comum em nossa sociedade. O herói também não é alguém que vive aventuras empolgantes. Herói, na acepção primitiva do termo (que estamos usando aqui), é alguém que transcendeu o ordinário, o apenas humano, em busca de alguma meta, algum objetivo, que, agora sim, o leva a viver aventuras, muitas vezes tomando decisões difíceis e arriscando (ou dando) a própria vida em nome do que acredita.

Sim, é fato que alguns heróis são verdadeiros cretinos. O que todos eles têm em comum, entretanto, é que sempre têm algo a ensinar e funcionam como verdadeiras referências para nós nos reveses da vida. Essa característica nos dá a dica – herói não é necessariamente o sujeito badass que enfrenta tudo de peito aberto e é sempre vitorioso, se impondo sobre os demais; herói é o sujeito que exposto às piores condições se mostra capaz de encontrar os melhores caminhos possíveis para lidar com elas, algumas vezes ao custo de grandes sacrifícios pessoais.

Talvez, para jogar RPG, seja necessária, ainda, outra compreensão acerca dos heróis – existe o tipo certo de herói para cada tipo de história. Se seu Mestre de Jogo propôs uma aventura dramática, você provavelmente vai prejudicar a narrativa tentando interpretar o Deadpool. Da mesma forma, se o grupo se reuniu para jogar uma aventura cômica, sua tentativa de interpretar Macbeth pode fazer seu personagem se tornar uma figura caricata, o que será bastante ruim se esta não for a sua intenção.

Sim, Somos Um Pouco Autores e Um Pouco Atores

Diante disto, talvez alguns digam, como já vi algumas vezes: “Ah, não sou autor de livros”, ou ainda “você não precisa ser ator para jogar RPG”. Eu entendo ambas as frases em um contexto em que talvez fosse melhor dizer: “hey, você pode jogar RPG mesmo que não seja tão bom jogador”. Assim como você pode jogar futebol sem ser um jogador profissional da seleção brasileira.

RPG, assim como futebol, é um jogo. Nossa espécie faz jogos e somos fascinados por eles provavelmente desde que os nossos primeiros ancestrais caminharam sobre duas pernas. Mas assim como futebol é sobre chutar uma bola, RPG é sobre interpretar papéis e contar histórias. Desta forma, a verdade é que, sim, você está escrevendo um livro, ainda que o seu livro jamais seja publicado. E, sim, você terá que ser um pouco ator, ainda que não esteja na TV nem em nenhuma outra mídia de impacto. Então eu digo, você pode contar histórias e interpretar papéis mesmo que não seja profissional, da mesma forma que pode bater uma pelada com os amigos e nunca jogar um campeonato mundial.

Diversão x Qualidade

Pela minha experiência narrando e jogando RPG, creio que outro aspecto importante do que estamos tratando aqui seja a definição de diversão. Sempre que eu ouço a frase: “o importante é que você e seu grupo se divirtam”, compreendo que o que está sendo dito é que não importa se você está escrevendo o próximo roteiro de sucesso para Hollywood desde que o seu grupo e você consigam se divertir… E não vejo nada de errado nisso. Mas outra coisa que também me parece, talvez por uma questão de contexto, é que estão dizendo: “você não precisa levar isso tão a sério, diversão implica descomprometimento”. E esta última sentença não poderia estar mais errada.

Nossa sociedade construiu uma série de ideias em torno do trabalho, que passam pela noção de que trabalho é coisa séria e necessária, além de dignificar a alma dos homens. Eu tive uma professora que dizia, parafraseando um autor cujo nome não me lembro, que o ideal é não trabalhar! Passado o primeiro impacto, ela explicava: “quem faz o que gosta, não trabalha nunca, apenas se diverte.”

É falsa a ideia de que diversão é necessariamente algo que você faz sem comprometimento e não leva muito a sério. Diversão, em primeiro lugar, é algo que te dá prazer e geralmente nós queremos muito fazer o que nos dá prazer… E fazer bem feito.

Pense em sexo (este artigo é impróprio para menores, né?). Quanto mais bem feito, maiores são as chances de você se divertir mais e querer continuar fazendo.

Dessa associação, nós podemos relacionar duas ideias – diversão e qualidade. Fazer algo por diversão não significa fazer mal feito ou de qualquer jeito, embora esta sempre seja uma opção. Em alguns casos, a falta de qualidade pode inclusive prejudicar a diversão. Nós tendemos instintivamente a ser mais criteriosos com aquilo que nos dá prazer. Eu, pelo menos, sou assim. E você?

O que é necessário para jogar bem RPG?

Tenho uma amiga que acompanha muito as conversas em meu grupo de RPG. Num de nossos bate-papos, em que falávamos sobre como fulano e cicrano jogavam bem, ela perguntou: “Mas o que é jogar bem RPG?”.

É claro que desta pergunta surgiram outros questionamentos que levaram a uma conversa muito bacana. Para nós, neste momento, a pergunta dessa amiga é importante para percebermos o quanto temos muitas ideias sobre ser um bom mestre de RPG ou como narrar bem um jogo, mas a ideia de se preocupar com a qualidade enquanto jogador parece estranha num primeiro momento, incompreensível.

Jogar bem um jogo de RPG é saber fazer uma boa ficha de personagem, utilizar combos e manejar o sistema? Não. Muita gente pode não concordar comigo, mas sempre considerei a importância do sistema secundária.

O sistema serve para introduzir o aspecto de jogo na arte de contar histórias. O sistema introduz aleatoriedade e regras às quais todos, inclusive o Mestre de Jogo, estão submetidos, de maneira que não acabe correndo o risco do Mestre se tornar o narrador de uma história para um grupo de ouvintes. O sistema é importante, mas a função dele acaba aí. A coisa mais importante em um jogo de RPG é a história ou histórias que estão sendo contadas. E eu posso afirmar isto com bastante segurança porque, por melhor que seja o sistema, não é ele que nos mantém com vontade de continuar jogando um RPG após meses ou anos de campanha.

Desta forma, não importa a sua ficha, os combos que você faz ou as saídas geniais, dignas de um advogado, que você usa para encontrar brechas nas regras e fazer coisas duvidosas, que contrariam qualquer noção de bom senso. O que importa é o quanto você está disposto a vestir a camisa do personagem. O quanto você está disposto a sair de si mesmo durante algumas horas para viver a história de outra pessoa, ser outra pessoa e, inclusive, se surpreender com as escolhas dela.

Jogar bem RPG, em suma, é a capacidade de dar vida a um personagem, fazer dele uma pessoa com valores, ideias, crenças e conflitos íntimos. Grupos de personagens vivos, por sua vez, dão vida à história do Mestre. O resultado, no final, costuma ser algo que dá muita satisfação a todos que participaram e o grupo costuma falar das sensações que tiveram nas peles de seus personagens por muito tempo. Uma característica das boas histórias é que elas nunca são esquecidas por aqueles que a conhecem.

E histórias, boas histórias, parecem se alimentar de nossas almas e paixões quando nos doamos a elas. Mais de uma vez, tivemos a sensação de que uma campanha ganhou vida própria e a história continuava se contando, sozinha, sem demandar esforço extra por parte do Mestre ou dos jogadores.

Os personagens, por sua vez, de repente nos surpreendem indo por caminhos que não imaginávamos ou fazendo coisas que nós mesmos reprovamos e não faríamos no lugar deles. Quando este tipo de coisa acontecer com você, acredite, você estará jogando bem RPG.

Por Mikka Capella

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