Mutant: Ano Zero – Genlab Alpha (resenha)

“Por dias vagaram pela Zona atrás dos cultistas que antes haviam enfrentado e agora que retornavam para a arca cansados e feridos, lá estavam eles, desfrutando de sua casa e sua hospitalidade, sentados em torno da fogueira e conversando com a chefona Verônica como se fossem velhos amigos. Antes que pudessem falar algo, era impossível não reparar na enorme gaiola ao lado dela, coberta parcialmente por um farrapo de pano.

– Bem-vindos de volta ao lar, meus amiguinhos! – disse a chefona enquanto puxava o pano e descobria a gaiola onde estava o estranho animal. Já tinham visto muitos coelhos em suas viagens pelo ermo, mas nenhum tão grande ou que os olhasse daquela maneira e firmasse como eles sob duas patas.

– Eu sei que não construímos boas relações com nossos vizinhos, mas hoje eles vieram aqui e nos presentearam com essa maravilha. O melhor de tudo é que me garantiram que esse coelho gigante é capaz de falar em nossa língua, mas até agora ele permanece mudo. Vamos ver se fala até o final do dia e quem sabe façamos hoje um bom negócio.

E aquele dia não poderia ficar mais estranho…”

Olá, companheiros e companheiras dessa longa jornada pelo ermo! Não sei se devo chamá-los dessa maneira hoje, afinal vamos caminhar em direções mais longínquas, vamos deixar por um minuto de lado a vida na podridão da Zona e falar de um paraíso que ainda existe. Se muitos de nós o conhecêssemos, talvez o considerássemos mesmo o Éden que o ancião insiste em nos convencer não ser mais do que uma lenda. Vamos ter uma conversa franca, tentar construir uma carta de apresentação do universo e da mecânica extraordinária de Genlab Alpha, co-irmão de Mutant: Ano Zero, que pode ser jogado em campanha própria, longe (mas não tão longe) da devastação dos Antigos, ou como parte de uma campanha de Mutant. É bom e prudente começar dizendo que não existe ainda (e receio que demore muito) uma versão traduzida de Genlab Alpha, então não vou traduzir todos os termos utilizados no jogo, simplesmente porque ficaria horrível sem as mãos de um profissional. Afinal, um trabalho desses envolve muito mais do que traduzir, é preciso uma série de adaptações e adequações e não é esse nosso objetivo aqui.

Enfim, sem entregar o metaplot de Mutant: Ano Zero, é perceptível que, por qualquer razão que seja (e ela está bem guardadinha na parte do livro que compete à Narradora do jogo), os mutantes têm sua origem em humanos que passaram por terríveis mutações, então você já deve ter imaginado que no Genlab Alpha esse mesmo conceito se aplica aos animais (Mutant, Year Zero: Road to Eden, já bebeu maravilhosamente nessa fonte. Vale a pena conhecer o jogo).

Em primeiro lugar, é uma experiência muito gratificante perceber logo de cara que, enquanto a vida dos mutantes gira em torno da Arca como seu porto seguro e da imensidão podre da Zona, nossos companheiros animalescos experimentam um pouco do que certamente qualquer um do lado de cá da cerca chamaria de Éden. E do lado da cerca literalmente, afinal o lar dos genlabs, como vamos chamá-los, é o Paradise Valley, um paraíso natural, onde a vida selvagem prospera com abundância em caça, pesca e outros prazeres que nem de longe um mutante saberia descrever ou poderia imaginar. E acaba aqui, não imagine que nossos amigos durmam plenamente em berço esplêndido nesse cantinho que sobrou do mundo dos antigos, existem perigos, muitos perigos que fazem a vida não tão prazerosa:

I) O primeiro desafio por aqui é cerca. Sim, Paradise Valley é cercado por paredes e cercas, vigiadas o tempo inteiro, cujos zumbidos elétricos anunciam que seria muito bom ficar longe delas. Sim, o paraíso é uma grande prisão e máquinas caminham ou mesmo voam como vigilantes que jamais permitirão que ultrapassem as cercas. E não estão satisfeitos em apenas observar e mantê-los nesse paraíso cativeiro, mas por vezes muitos são capturados e levados para um lugar desconhecido que os poucos que de lá voltaram descreveram como um terrível labirinto subterrâneo, isso porque voltam sempre com suas memórias apagadas e devastadas pelos experimentos doentios de seus algozes.

Aqui está uma primeira direção bem divertida do jogo, o desejo de ultrapassar as cercas e conhecer o mundo para além dos muros. Embora grande parte dos animais tratem os vigilantes como deuses, o desejo de liberdade arde constantemente na vontade dos genlabs e, é óbvio, isto não será de modo algum fácil, não espere que seja mais simples do que a busca dos mutantes pelo Éden, mas é o desafio que comanda o hype aqui.

II) Como era esperado, as cercas e as máquinas não são os únicos inimigos e desafios, há outros do lado de dentro, há bestas perigosas vivendo bem perto de você e há as tribos, há outras oito tribos de animais além da sua e antes de avançar no sonho da liberdade talvez você tenha que aprender a sobreviver nesse mundo de predadores. Aqui é um ponto legal para conhecermos melhor cada uma dessas opções. Vale um adendo para dizer que Genlab é muito feliz ao brincar com a escolha de nomes a partir do que os animais herdaram dos Antigos e você pode embarcar nessa aventura escolhendo ser:

1) Dog Tribe’s Outpost – The Lodge: Normalmente batizados com nomes de astronautas e satélites, cães, raposas e lobos formam a mais rica e poderosa das tribos e conseguem isso atuando como agentes dos vigilantes entre os animais, sendo seus féis escudeiros, o que obviamente não lhes rende um bom convívio e uma boa fama entre os seus (é isso, os caras são uns canalhas). Os cães também controlam o comércio em Paradise Valley e o habitat da tribo (um prédio de quatro andares) é também um grande posto de comércio estrategicamente localizado.

2) Cat Tribe’s Outpost – The Cabin Village: Batizados com nomes de antigos romanos, os desconfiados habitantes da Vila das Cabanas (gatos, pumas e linces) são uma tribo pequena, vivendo da caça e da pesca, eternamente em conflito com a tribos dos ratos. Todo ódio entre felinos e roedores pode ser observado logo assim que o visitante entre em seu habitat, cuja entrada é decorada com dois crânios de ratos espetados, um aviso para seus inimigos e seus apoiadores fiquem longe de seu território.

3) Rabbit Tribe’s Outpost – Rabbit Warren: Não é incomum que os vigilantes realizem batidas surpresas nos habitats de todas as tribos e em pontos diversos de Paradise Valley, montando postos de revista que pegam de surpresa os andarilhos desavisados, mas são muito comuns as batidas violentas no viveiro das lebres e dos coelhos, isso porque nossos comedores de cenoura são os líderes da resistência. Sim, existem aqueles não se submetem aos vigilantes e vislumbram um mundo livre. Coelhos e lebres são os líderes dos rebeldes! Um aspecto muito legal da tribo é quanto aos nomes originais (sempre jogadores de futebol do Mundo Antigo) que, como parte da resistência, costumam abandonar e adotar nomes secretos baseados em suas caraterísticas (Pés Ligeiros, Olho Grande, etc), costume que pode ser seguido por qualquer outro animal.

4) The Rat Tribe Outpost – Rat Castele: Ostentando nomes de famosos compositores do Mundo Antigo, ratos, camundongos e esquilos habitantes do castelo se dividem entre a guerra contra os gatos e seus conflitos internos, sobretudo por sua superpopulação. Outro desafio são os membros da tribo que se aliaram à resistência, trazendo os olhos dos vigilantes para o seu povo – consigo pensar grandes alianças e uma grande dor de cabeça nos felinos vindas de uma possível parceria entre os roedores, coelhos e lebres.

5) Bear Tribe’s Outpost – The Bear Park: Chamados por nomes famosos da indústria cinematográfica, como Bogart e Bergman, os nada sociáveis ursos e guaxinins preferem quase sempre andar sozinhos do que reunir-se em seu habitat, um conjunto de velhos edifícios. Os gigantes peludos também têm de lidar com o desaparecimento de seu líder, Truffaut 13, cujos boatos dizem ter sido levado pelos vigilantes. Eis um gancho poderoso que, cedo ou tarde, vai de alguma forma afetar a vida das demais tribos e, é claro, dos personagens.

6) Ape Tribe’s Outpost – The Islands in the Lake: Gorilas, chimpanzés e orangotangos habitam as duas ilhas no grande lago. Seus nomes imitam cientistas famosos como Einstein e Newton. A mais pacífica das tribos, governada por um conselho de velhos anciãos, talvez tenha na rebeldia dos mais jovens, que reivindicam mudanças nesse comando, justamente seu conflito mais sério. No mais, é sempre possível encontrá-los percorrendo Paradise Valley ou calmamente pescando nas águas do lago, quando estão preocupados com seus conflitos internos.

7) Badger Tribe’s Outpost – Badger: Texugos, doninhas e martas carregam os nomes de jogadores famosos de Hockey ou outros esportes de inverno (algo que podemos adaptar tranquilamente para um de nossos esportes favoritos) e vivem nos túneis abaixo de velhos edifícios, deixando os demais acharem que seu verdadeiro lar são os prédios em ruínas, enquanto podem defender com vigor seu verdadeiro território, principalmente dos répteis, seus inimigos mortais.

8) Reptile Tribe’s Outpost – The Terrarium: Inimigos mortais dos texugos, doninhas e martas, os répteis (lagartos, sapos, rãs e tartarugas), cujos nomes imitam celebridades do antigo mundo da música e dos negócios, vivem em um conjunto de antigos edifícios de aço e vidro, na região pantanosa, bem próximos do grande lago. São terrários com saídas bem trancadas para a superfície e acesso apenas pelo fundo águas turvas e pantanosas. Como o espaço é pequeno para todos os membros da tribo, alguns permanecem expostos aos seus inimigos, morando em pequenas tendas nas ilhas próximas aos terrários, mas não se aproximem com descuido, os répteis tentam evitar conflitos, mas se defendem sempre com extrema violência e possuem uma péssima reputação diante das demais tribos.

9) A Nona Tribo: Finalmente temos os alces, corças e renas, chamados como os poetas e romancistas do Mundo Antigo, a mais exótica das tribos, formada por nada mais que algumas dúzias de membros, que nunca reivindicou para si um território por preferirem vagar em Paradise Valley, observando e estudando as idas e vindas dos animais entre seus postos avançados, deixando como sinais de sua presença somente restos de extinta fogueira ou marcas que podem ser encontradas em algumas árvores. Recrutar membros da tribo, por exemplo, para unir-se à resistência é um grande desafio, mas tratemos disso em um outro momento.

E não para por aí! A dinâmica determinada pela escolha de seu animal é também dos animal powers que terá a sua disposição. Aqui é preciso fazer novamente um paralelo com Mutant: Ano Zero, não apenas pela denominação “animal powers” no lugar de “mutações”, como pela mecânica que no Genlab permite que o jogador escolha o poder de seu personagem, diferente da aleatoriedade dos mutantes. Por outro lado, a escolha dos animal powers está também definida pelo tipo de seu animal e, embora não sejam listadas aqui, vale citar algumas. Pense em gastar seus feral points (que equivalem aos pontos de mutação) para alimentar-se de plantas como os herbívoros, para ativar seus sentidos de caçador e sentir a presa mesmo depois de dias ou para que seus olhos se adaptem e consigam enxergar na escuridão como se estivesse na luz do dia.

Depois de tudo isso, se já viveu a experiência de Mutant: Ano Zero, deve estar fazendo algumas perguntas já esperadas. Talvez a primeira delas seja sobre o efeito do uso desses poderes, já que as mutações destroem aos poucos os mutantes. Então, com os nossos companheiros peludos acontece algo parecido, mas não igual: o desafio aqui é equilibrar seu lado humano e animal. Então, animal powers não possuem possibilidades de falha, mas seu uso pode gerar revertérios que desequilibrarão a relação entre homem e animal artificialmente construída em você. Espere desde um frenesi selvagem de dar inveja a um fã de Lobisomem: o Apocalipse à perda destes poderes quando seu lado humano sobrepujar sem lado animal.

Outra pergunta casual talvez seja acerca da inserção de um Genlab no mundo dos mutantes: vou poder conviver perfeitamente com as mutações? Sim, pontos de mutações e feral points são perfeitamente compatíveis e há possibilidade inclusive de possuir ambos: animal powers e mutações. Sério isso? Seríssimo, muito divertido, mas é óbvio que com limitações. Nunca será possível possuir uma combinação maior que 04 animal powers e mutações e os primeiros nunca poderão ser suprimidos. Ou seja, se seu personagem possuir uma combinação de quatro mutações e animal powers e adquirir um novo animal power, uma de suas mutações será suprimida. Vale lembra que você continua podendo escolher seus animal powers mesmo nesta situação, então quando tiver 04 deles, você terá ainda a opção, ao ganhar um novo poder, de substituir um dos que já possui. Essa possibilidade é genial e gera uma dinâmica muito divertida.

Finalmente, não tem como chegar até aqui sem estar questionando: onde estão os “papéis” em Genlab Alpha? Não percamos mais tempo:

O Healer: Pense em um botânico muito louco ou em um alquimista, o Healer é esse cara. Ele conhece muito bem todas as plantas espalhadas por Paradise Valley e, por que não, as que ainda sobrevivem no ermo desolado? Ele sabe diferenciar aquela que matam e aquelas que curam e é capaz de produzir com elas poções que podem curar, revigorar, estimular e é claro matar. Vai encarar?

O Hunter: Acha fantástico quando o batedor faz sua leitura da Zona e consegue identificar inimigos antes que eles o alcancem? Então espere até conhecer o Hunter e suas habilidades para rastrear e caçar. O Hunter é capaz de analisar rastros recentes ou antigos e descobrir a quais criaturas pertencem, a qual distância estão do grupo e até mesmo se uma está ferida. Quem não vai querer sair para a Zona com um cara desses?

O Warrior: Todo RPG que se preze tem o cara do fight, que sabe que uma fuça amassada vale mais que uma boa conversa. Mas não pense o Warrior como um guerreiro bruto, mas sim como algo mais refinado, capaz de literalmente estudar seu inimigo, descobrindo seus pontos fortes e fracos e utilizando esse conhecimento contra ele na hora que o pau quebrar.

O Seer: Quer sua campanha seja em Paradise Valley ou no ermo, esse não é um mundo fácil. Mas a coisa pode ficar mais simples se seu grupo tiver a companhia de um vidente. Esse é o Seer, capaz de literalmente ter visões do futuro e, o mais legal, talvez seja a liberdade do jogo em como ele chega a esses feitos, podendo inclusive utilizar plantas alucinógenas. Sem dúvidas um dos papéis mais divertidos em Genlab Alpha.

O Scavenger: Imaginem um rato chamado Mozart que anda por Paradise Valley ou mesmo pela Zona empurrando seu velho carrinho cheio de sucata e recolhendo absolutamente tudo que encontra.

Quando precisa de um equipamento ou arma, o Scavenger simplesmente enfia a mão em seu carrinho e pega esse item que terá um bônus igual ao número de sucessos obtido no teste de habilidade. Na boa, é algo fantástico de pensar e não há como não imaginar a construção de scavenger/engenhoqueiro utilizando o talento “faz tudo” (e sim, essa combinação é perfeitamente possível).

Então meus camaradas, há muito mais para escrever sobre Genlab Alpha, não vão faltar oportunidades, mas o espaço aqui é curto! O objetivo, que espero ter alcançado, é despertar em novatos e veteranos desse fantástico universo o desejo de colocarem a mão em mais essa preciosidade que a Frian Ligan nos oferece. É muito, mas muito lamentável mesmo que ainda não exista uma tradução, mas o jogo possui uma leitura muita fácil, principalmente para quem já conhece Mutant: Ano Zero. Vale a pena comprar a versão em inglês e serão muitas partidas garantidas de diversão.

O papo é bom e proveitoso, mas a noite chega e o zumbido dessa cerca provoca arrepios que me deixam desconfortável. Nos encontramos outro dia, quem sabe possamos correr juntos por aí, dividir uma caça ou simplesmente conversarmos sobre o que existe do outro lado desses muros.

Por Anderson Fontes
Equipe REDE
RPG

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