Chamado de Cthulhu: O folclore de “Cidade Invisível” como elemento de Cthulhu (Parte2)

Bom dia/tarde/noite, meus caros rpgistas! Pelo visto, decidi um jeito de chamá-los por aqui nossos artigos de Chamado de Cthulhu.

Na primeira parte deste artigo, falei sobre o uso do folclore brasileiro, em específico, das lendas utilizadas na série Cidade Invisível. Na primeira parte não tivemos nenhum spoiler, mas, desta vez, acho melhor avisá-los que haverá alguns. Não é nada da trama e do enredo, entretanto, as últimas lendas da série podem fornecer pequenos spoilers sobre um personagem e o antagonista da série.

Novamente, vou explicar o processo que o artigo seguirá para que vocês conheçam as duas últimas lendas da série Cidade Invisível: explanarei um pouco sobre origem das criaturas folclóricas e alguns fatos “concretos” sobre essas lendas; posteriormente, darei um possível uso dessas figuras em cenários lovecraftianos.

A primeira criatura folclórica que devemos trazer é o Curupira e, de acordo com o dicionário Michaelis, significa: Ente fantástico que habita as matas, considerado um dos mitos mais antigos do Brasil. É representado por um garoto de baixa altura, cabelos cor de fogo, e pés com os calcanhares para a frente e os dedos para trás, a fim de enganar os caçadores. É o protetor das árvores e da caça; currupira.

Temos algumas informações pertinentes sobre essa definição do dicionário: um garoto baixo, cabelos cor de fogo, habitante das matas, pés com calcanhares para frente e dedos para trás e protetor das matas e é algo muito antigo, datado desde o século XVI. Esse parece ser o cerne de tudo que está relacionado ao curupira.

Vamos com seu nome que gera divergências, alguns teóricos dizem que provém do tupi [kuru’pir], que significa “o coberto de pústulas”; outro folclorista dirá que a palavra vem [curu], contração de [corumi] (menino), e [pira] (corpo), significando, “corpo de menino”; por fim, há outra origem da palavra que origina da contração entre [kuruba] (sarna ou verruga), e [pira] (pele), significando, portanto: “pele de sarna” ou “pele de verrugas”. Não importa qual origem etimológica se utilize para denominar o curupira, há informações em seu nome que podem nos ajudar.

A ideia dele ser um menino agradará alguns por causar um horror diferente, é uma criança com intenções assassinas ou algo que aparenta ser uma criança inofensiva apenas para enganar seus perseguidores. A outra, de ele ter a pele coberta de verrugas e pústulas, ajuda ainda mais nos cenários lovecraftianos, no qual criaturas que possuem peles escamosas, escorregadias e pustulentas são umas das descrições que Guardiões tem em mãos para utilizar ao retratar alguma criatura ou vislumbre de um deus ou titã.

Vamos trazer algumas informações da própria pena de Padre José de Anchieta, um dos fundadores de São Paulo e Rio de Janeiro e também um dos primeiros poetas e escritores na terra chamada Brasil. O documento histórico chama Carta de São Vicente, na época de 1560:

“É cousa sabida e pela bôca de todos corre que ha certos demonios, a que os Brasis chamam corupira, que acometem aos Indios muitas vezes no mato, dão-lhes de açoites, machucam-os e matam-os. São testemunhas disto os nossos Irmãos, que viram algumas vezes os mortos por eles. Por isso, costumam os Indios deixar em certo caminho, que por asperas brenhas vai ter ao interior das terras, no cume da mais alta montanha, quando por cá passam, penas de aves, abanadores, flechas e outras cousas semelhantes como uma espécie de oblação, rogando fervorosamente aos curupiras que não lhes façam mal.” (p. 34)

“Ha tambem outros, principalmente nas praias, que vivem a maior parte do tempo junto do mar e dos rios, e são chamados baetatá, que quer dizer “cousa de fogo”, o que é o mesmo como se dissesse “o que é todo fogo”. Não se vê outra cousa senão facho cintilante correndo daqui para ali; acomete rapidamente os Indios e mata-os, como os curupiras: o que seja isto, ainda não se sabe com certeza.” (p. 34-35)

Com apenas estes relatos de José de Anchieta já temos algumas informações promissoras sobre o curupira: é perigoso como o Boitatá e às vezes se assemelha a ele por ter a questão do fogo, seria daí que viria a ideia dos cabelos de fogo do Curupira, ele correria pela mata como uma tocha incandescente, levando todos que a vissem no meio da noite ou do dia ao medo extremo e paranoico, porque algo vem vindo de dentro da mata. A outra é que o curupira habita a mata densa e ataca os que passam por ela e alguns aplacam sua raiva e fúria ao deixar presentes para o curupira.

Continuemos com mais relatos históricos sobre o curupira, pois o material sobre esta lenda é vasto, escreve Couto de Magalhães em O selvagem (ed. 1913):

“O curupira é o deus que protege as florestas. As tradições representam-o como um pequeno tapuio, com os pés voltados para trás e sem os orifícios necessarios para as secreções indispensáveis á vida, pelo que a gente do Pará diz que ele é mussiço. O curupira ou currupira, como nós lhe chamamos no Sul, figura em uma infinidade de lendas, tanto no Norte como no sul do Brasil. No Pará, quando se viaja pelos rios e se ouve alguma pancada longínqua no meio dos bosques, os remeiros dizem que é o curupira que está batendo nas sapupemas (árvore carapanaúba), a ver se as árvores estão suficientemente fortes para sofrerem a ação de alguma tempestade que está proxima. A função do curupira é proteger as florestas. Todo aquele que derruba, ou de qualquer modo estraga inutilmente as árvores, é punido por ele com pena de errar por tempos imensos pelos bosques, sem poder atinar com o caminho da casa, ou meio algum de chegar até aos seus.” (p. 157).

Ermano Stradelli em Vocabularios da lingua geral português-nheêngatú e nheêngatú-português, na Revista do Instituto Histórico (t. 104, v. 158), utiliza quase das mesmas palavras que Couto de Magalhães. Acrescenta, porém, que não só a floresta, mas tambem os animais se acham sob a “guarda direta”, isto é, proteção do curupira. Diz mais ainda: “é sempre propício ao caçador que se limita a matar conforme as suas necessidades” e castiga o que “mata por gosto, persegue as fêmeas e os pequenos ainda novos”.

Para Spix e Martius em Reise in Brasilien III (p. 1109), o curupira é menos passível de criar intrigas que o jurupari: o jurupari é um espirito-do-mato caçador, que pode se apresentar sob diversas formas, entra em conversa com os indios, desperta sentimentos de inimizade entre indivíduos e com malícia observa as desgraças humanas.

Perdoem o português de algumas citações que faltam acentos e utilizam algumas palavras mais antigas, mas usá-las do jeito que está será de grande ajuda na hora de trazer o curupira para sua mesa. Vamos aos fatos apresentados: ele habita as matas; pode matar nativos e colonos; os indígenas davam-lhe oferendas; ele parece com o Boitatá por passar como um rastro de fogo entre as matas; pode ser baixinho (talvez um menino); bate nas árvores para checar se estão firmes o que alerta pessoas de sua presença; rapta indivíduos que tentam derrubar árvores sem necessidade da madeira para sobreviver; protege os animais também; não ataca caçadores que matam animais única e exclusivamente para se alimentar, mas agride os caçadores que caçam por caçar, que perseguem fêmeas (elas podem estar grávidas e/ou gerar novos animais) e filhotes; o curupira não causa o caos entre indivíduos por meios de transformações de sua imagem, isto é, ele não é metamorfo; por fim, parece que ele pode atuar em todo o território brasileiro, não estando restrito a regiões.

Com todas essas informações já podemos imaginar o uso do curupira em um cenário lovecraftiano. É preciso pensar no curupira mais como uma entidade e deus do que um simples monstro, uma vez que, ele pode receber oferendas e só age em determinadas circunstâncias e seu objetivo é proteger seu território por algum motivo desconhecido.

O curupira pode ser um deus que cultistas adoram e prestam oferendas em troca de poder, já que ele é uma das lendas mais antigas do Brasil, sendo possível ser um dos Antigos do Mythos de Cthulhu. Poderia ele ser a causa de desaparecimentos em uma região que possui alguma mata virgem, isto é, área verde que nunca foi desmatada ou reflorestada, isso entra em relação com o que Pickman (conto O modelo de Pickman) disse sobre cidades antigas atraírem espíritos e forças antigas e, ao que tudo indica, ocorre o mesmo com o curupira; ele se liga à fauna e flora antigas, sendo algumas mais antigas que a própria noção de país Brasil.

Caso seus investigadores sejam mais altruístas e não tenham infringido nenhuma regra do curupira, desmatar e caçar sem necessidade, utilize um PNJ que o faça e deixe a ira do curupira cair sobre os personagens dos jogadores ou pense na possibilidade que um antigo mentor ou amigo dos investigadores morreu em decorrência do ataque do curupira e os investigadores que vieram serão apenas mais outras vítimas da criatura da floresta que fora desperta.

Não esqueça de utilizar os efeitos de terror do curupira e sua chegada: uma luz, como uma tocha, que perambula pela floresta ao longe e fica circundando os investigadores; as batidas nas árvores, nas quais os PNJs dirão que é coisa do curupira e, se possível, adicione o elemento de um grito ou assovio para indicar que o curupira vem vindo e causar um certo terror psicológico de sua vinda.

Já foi bem longo a parte do curupira e há muito mais material sobre ele, é claro, mas nosso artigo não pode ficar muito longo. Vamos para a próxima, e última, criatura do nosso folclore que pode ser muito bem aproveitada pelos cenários lovecraftianos: o corpo-seco.

O corpo-seco também é conhecido como unhudo por conta de suas longas unhas. O corpo-seco é alguém amaldiçoado e descrito por Basílio de Magalhães (historiador e folclorista) como um:

“homem maligno e que agrediu a própria mãe que ao morrer, nem Deus nem o diabo o quiseram e a própria terra o repeliu e, um dia, mirrado, defecado, com a pele engelhada sobre os ossos, da tumba se levantou, em obediência a seu fado, vagando e assombrando os viventes, na calada da noite.”.

Podemos entender o corpo-seco com um corpo vivo que continua secando e definhando de maneira eterna, mas nunca apodrecendo, porque a terra não quer os restos mortais daquele corpo que fora rejeitado por Deus e o diabo. Por ser uma espécie de “morto-vivo” seus cabelos e unhas são enormes, uma vez que, pela crença, senso comum e relatos se costuma dizer que depois que alguém se torna o corpo-seco essas duas partes do corpo não param de crescer jamais e sua aparência é de um couro seco com ossos a mostra.

Geralmente, o que torna alguém um corpo-seco são basicamente três pecados:

1. Agredir, desrespeitar ou matar pai e mãe, desta forma infringindo o quinto mandamento cristão – honra teu pai e tua mãe;
2. Alguém que pratica qualquer tipo de maldades contra os seus familiares e/ou desconhecidos várias vezes durante a sua e não se arrepende, infringindo assim o ensinamento de Jesus – amarás o teu próximo como a ti mesmo;
3. O indivíduo que fez uma promessa a Deus e não a cumpriu, infringindo o terceiro mandamento cristão – não pronunciarás o nome do Senhor teu Deus em vão, porque o Senhor não deixará sem castigo quem pronunciar seu nome em vão.

O corpo-seco habita casas abandonadas, encruzilhadas e locais onde a vegetação não cresce, mas morre; já que tudo que o corpo-seco toca, seca e morre. Há algumas poucas variações dessa lenda que diz que ele sugaria o sangue de suas vítimas como um vampiro. Em todo caso, é importante entender que o corpo-seco é uma criatura territorialista e que pode vagar por alguma, mas ele não se aventura longe demais, ele sempre volta para o local de sua morte ou sepultamento (é comum que um corpo-seco não seja enterrado em um cemitério, mas levado a um lugar distante e largado).

Muito bem, temos informações o suficiente para traçarmos um bom uso para o corpo-seco em cenários de Chamado de Cthulhu. O corpo-seco parece ser bem utilizado como uma criatura aterrorizante, na qual vem fazendo vítimas em determinada região e a única pista é que as vítimas parecem secar e outras possuem marcas de garras nos cadáveres; utilize PNJs para compartilharem o que é um corpo-seco, como eles são feitos e de relatos de um antigo morador que era “ruim tão ruim, mas tão ruim que nem Deus e o diabo ia quis ele”.

Outro ponto interessante, no qual o corpo-seco se relaciona com Lovecraft, é com as criaturas horrendas que Joseph Curwen invocava em sua fazenda no conto O Caso de Charles Dexter Ward. No conto, Curwen (alerta de spoilers!) roubava cadáveres e com sais alquímicos e fórmulas de magia de Yog-Sothoth, ressuscitava certos mortos em busca de informações, mas alguns outros cadáveres acabavam por ser algo ainda mais aterrorizante e maligno, sendo muito utilizados como mão de obra escrava, mas eles tinham um temperamento mais difícil e eram extremamente agressivos e precisavam ser alimentados com carne constantemente para serem mais “dóceis”; as poucas criaturas que escapavam faziam muitas vítimas pela região.

Pense no corpo-seco como uma dessas criaturas invocadas por bruxos e feiticeiros cultistas de Yog-Sothoth ou até mesmo o próprio bruxo ou feiticeiro que morreu por conta de moradores, como no caso de Joseph Curwen, da região que não aguentavam mais as maldades e bruxarias deste feiticeiro. Ter um padre como investigador ou PNJ, que pode ser consultado com facilidade, neste caso ajudaria bastante a explicar o porquê um corpo-seco tornou-se um corpo-seco (reler a parte dos pecados que criam um corpo-seco).

Outro ponto importante é fazer os jogadores ficarem investigando os arredores do ponto de “descanso” de um corpo-seco, por exemplo: os habitantes de uma cidadezinha sofrem ataque de alguma coisa que seca elas durante a noite. Os investigadores irão na casa da vítima, na cena do crime, consultar os mais velhos da região, os arquivos e jornais da cidade para ver se já houve casos parecidos; os jogadores devem orbitar a região do corpo-seco, mas o embate final será na morada da criatura. Um jeito de derrotá-lo é seguir a mesma premissa do conto O Caso de Charles Dexter Ward e saber a fórmula mágica e as palavras do feitiço correto para banir a criatura, por isso, deixe algum grimório ou diário que os investigadores podem achar e ter como recurso, mas lembre-se: magia em Chamado de Cthulhu custa caro, peça mais que apenas uns pontos de sanidade, exija itens, sacrifícios e coisas do gênero; o feitiço precisa ser algo que os investigadores irão pensar pelo menos umas cinco vezes antes de recorrer a ele.

Espero que tenham gostado do artigo e que as informações trazidas te ajudem a pensar em Cenários no Brasil e que utilizam nosso folclore em sua Aventura ou Campanha. Desejo que você crie bastante dificuldade, medo e horror cósmico para seus jogadores e que vocês se divirtam durante a sessão.

Atenciosamente,

Marcus Óliver
Equipe REDE
RPG

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