Vampiro 5ª Edição: Consegui, mas a que custo? (3º Lugar do I Concurso Literário V5)

Com o peso do mundo escorrendo pelo rosto em uma linha rubra, marcando descontroladamente e sem ser impedida, a expressão de desespero. Solitário. Encolhido no canto do velho galpão, tendo como a única segurança meus braços agora enrolados fortemente em minhas pernas. As lágrimas caem como um meteoro de encontro ao chão, sem testemunhas.

* * *

As gotas de chuva na janela funcionam como um despertador. Levanto da cama evitando movimentos bruscos, pois não quero acordá-la. Na cozinha, preparo uma surpresa. Não é do meu costume cozinhar, mas peguei uma receita fácil, omeletes. Os despertadores tocam e o barulho me alerta que tenho que agilizar as coisas, as crianças já estão se arrumando. Amanda grita com elas para se apressarem. Enquanto o noticiário retrata a violência no país, tenho a sensação que sairá sangue do aparelho. Um segundo de distração e a voz em forma de trovoada chega a meus ouvidos como um soco: “Sandro eu já falei, mais de um milhão de vezes, não mexe na minha cozinha! Além de inútil, agora você está tentando nos matar?”

As palavras dela vem acompanhada de risadas das crianças que assim que me veem agem como se eu não estivesse ali e partem em direção à porta.

“Bom dia, crianças, eu fiz o café.” Eles continuam, abrem a porta, mas antes de sair gritam pra sua mãe. “Diz pra esse aí que já passou o tempo dele ser um bom pai e que já deve estar na hora dele sair pra conseguir a comida dessa casa. Não foi essa a resposta dele no meu aniversário?” Ecoou em minha cabeça, e doeu, doeu muito.

“Amanda, podemos tomar café juntos hoje?” Digo pra ela tentando sorrir.

“Sandro eu não quero olhar na sua cara depois desta bagunça que você fez aqui. Vou no mercado comprar alguma coisa pra tirar essas manchas de fumaça da minha… MINHA cozinha.” E sai batendo a porta com força. Tomo meu café sozinho sentado à mesa da cozinha.

* * *

A chuva se intensifica e deixa o trânsito da cidade um caos. Buzinas e gritos acaloram os ânimos. O engarrafamento deixa tudo parado. Parece que uma das vias foi alagada. Dentro do carro, a voz de Amanda é minha única companhia. Chego correndo ao grande prédio do centro, entro no elevador me esgueirando entre as pessoas que, aos poucos, vão esvaziando. Ele sobe. No décimo quarto andar, estou somente eu e Victor, meu antigo estagiário, que há duas semanas recebeu uma promoção apresentando o MEU trabalho. Ali não há conversas ou cumprimentos. Nem mesmo troca de olhares. Não tenho ressentimento, pois foi uma boa oportunidade para ele, que viu uma pequena falha no projeto e corrigiu a tempo, mas assumindo o projeto como dele. A música no elevador para por um instante, anunciando que são nove e trinta da manhã. Logo, chegamos ao vigésimo quinto andar. Eu já devia estar na minha sala há uma hora.

“Onde você estava? Está atrasado de novo! E não me venha com desculpinha de chuva, pois se tivesse virado a noite aqui, você saberia o quanto o dia de hoje é importante.” Meu chefe grita, ecoando pelo salão. Todos os olhares estão em mim. Risos contidos, outros com feições preocupadas. Mas todos sabem que não devem irritar o diretor Marcos.

“Me desculpe o atraso Marcos. O trânsito estava horrível e fiquei agarrado em um engarrafamento na avenida…” Antes que eu possa reagir, a resposta chega como um feixe de luz “Cala a sua boca seu inútil! Eu não sei porque ainda te mantenho nessa empresa. Você acertou uma vez, mas lembre-se, hoje é seu último dia se você não agradar os investidores.”

Abaixo minha cabeça, afastando de mim os olhos julgadores ao meu redor. Entro calado na minha sala, pego meus documentos e com a mesma postura saio para a sala de reuniões a tempo de ver Marcos conversando com Victor na porta à frente. “Bom garoto! Então trouxe um plano “B” ou melhor um projeto de verdade? Você sabe que só dei essa chance para o Sandro porque você me pediu. Por mim ele já estava na rua.” Diz Marcos com um sorriso estranho no rosto.

“Ele é um bom homem, merece uma chance, ou ele brilha ou vai acabar saindo daqui humilhado.” Victor responde com o mesmo sorriso.

Havia algo de estranho nos olhos deles, como se já soubessem o que estava por acontecer. Um desastre! Esta é a única palavra que tenho pra descrever o que aconteceu na reunião. Tudo deu errado. Os valores dos orçamentos não batiam com os valores propostos, a arte ficou diferente do briefing e a cereja do bolo foi eu usar cores muito parecidas com a do concorrente. Marcos tratou minha apresentação como uma piada de mal gosto. Gritou para todo o prédio ouvir, que eu era um sabotador que estava trabalhando em conjunto com os sanguessugas da Vermilium. Que eu queria destruir a empresa que o pai dele deu a vida para construir e que nunca mais eu iria trabalhar com Marketing nesta cidade. Que o melhor a fazer era rasgar meu diploma e ir trabalhar como um faxineiro já que parecia mais com um desses que com um profissional de verdade. Juntei minhas coisas ao som dos gritos constrangedores que não pararam nem mesmo quando os clientes já haviam aprovado o projeto do Victor. Nem quando eu já havia assinado a papelada de demissão, que me parece, já estava pronta antes que eu entrasse na sala. Um constrangimento gigante. Todos à minha volta me olhavam e demonstravam que tudo que estou sofrendo não é nada mais do que merecido.

* * *

Na volta pra casa, minha cabeça estava enlouquecendo. A dor e a tristeza me tomam. Dentro do carro relembro as palavras da Amanda e do Marcos. Será que eu realmente sou só um inútil? Paro o caro em um canto e choro por alguns minutos. Minha cabeça doí, meus braços doem, sinto meu coração acelerar e eu sei que, ao chegar em casa e contar tudo isso para Amanda, vai fazê-la repetir mais uma vez que sou um inútil.

Antes do almoço o trânsito flui, mas dirijo devagar de qualquer forma. Não estou com pressa de enfrentar minha esposa e suas provocações. Chego e subo as escadas do prédio de cabeça baixa e pensando em como falar com ela. Será que devo ligar para o Yuri? Perguntar como devo falar? Ele sempre me ajudou. Bem… melhor não.

Abro a porta sem fazer alarde. Sei que ela vai se assustar com barulho fora do horário. Amanda é muito metódica e não gosta de nada fora de seu cronograma. Na sala a televisão ligada. Um filme passando, um romance ao que me parece. O som alto da televisão consumia o ambiente, mas ninguém ali. Sobre a mesa de centro, uma garrafa de vinho aberta pela metade e duas taças. Amanda não é de receber visitas, não tem amigas na cidade. E, nas últimas semanas, faz questão de me lembrar que cuidar da casa e das crianças afastou todas as pessoas que ela conhecia e a tornou uma refém. Uma refém, dona de casa e mãe. Deixo minhas coisas no sofá e antes que possa chamar por seu nome, escuto um barulho vindo do nosso quarto. Me aproximo andando pelo corredor, com medo do que pode ser. O som fica mais intenso, como se algo estivesse sendo jogado contra a parede com força. De frente para a porta fechada, posso ouvir a respiração forte e os gritos dela. Minha esposa, suplicando por mais prazer, implorando pela habilidade daquele que compartilha coma ela MINHA cama. Eu antes, estava com tanto medo de descobrir o motivo do barulho que só notei as roupas jogadas ao chão do corredor agora. Uma camisa jogada com um crachá saindo do bolso… não quero descobrir quem é. Mesmo assim me abaixo e pego. Yuri. Meu melhor amigo. Aquele me encorajou a chamar Amanda para sair. Que me ensinou como devia falar e agir com ela. O mesmo homem que foi meu padrinho de casamento e padrinho dos meus filhos. Me sento no corredor ao lado das roupas e choro mais uma vez. Choro baixinho, externando a tristeza da minha descoberta. Não os interrompo e me levando devagar. Antes que eu saia, escuto Yuri gritar: “Tem alguém ai?” E em seguida a resposta ofegante de Amanda “Para de gracinha! Você disse que hoje ia aguentar direto sem pausa. Então para de inventar desculpa e me fode!” Com esta despedida, saio do meu apartamento em silêncio, praguejando mentalmente a minha falta de coragem. Eu não passo de um covarde!

* * *

Quatro e trinta da tarde e estou aqui, sentado em um bar com os olhos vermelhos de tanto chorar. Na mesa, uma garrafa de cerveja cheia e quente. Achei que iria me confortar, mas é impossível. Já estou aqui há mais tempo do que imaginava. Olhando as nossas fotos no celular. Ainda tenho uma do nosso primeiro encontro. Passo o dedo de um lado pro outro, vendo as lembranças da nossa família e toda vez que vejo Yuri, me revolto. Não consigo parar de chorar. Eu confiava nele como meu melhor amigo. Da nossa turma foi quem sempre esteve do meu lado. Vejo a foto de todos nós reunidos no primeiro período de marketing e jornalismo da Federal. Éramos jovens, mal tínhamos vinte anos. Dia a dia fomos nos aproximando e sempre contando uns com outros. Alguns ficaram, outros saíram e sumiram da turma, mas nós cinco estávamos sempre juntos. É isso! Ainda tenho a Jane, o Silva e o Bartô. Tento ligar pra eles, mas ninguém atende. Estou a tanto tempo sentado nessa cadeira, que já esqueci que eles ainda devem estar no trabalho. Envio uma mensagem pelo grupo do Whats e logo todos visualizam, mas ninguém responde. Coloco o celular sobre a mesa e limpo as lágrimas dos olhos mais uma vez. Escuto a notificação e vejo uma resposta a tempo de ler antes da mensagem de Jane ser deletada: “Gente é sério? Ninguém vai responder o Sandro no outro grupo? O cara pode ser chato, até as vezes insuportável, mas descobrir que o Yuri tá comendo a mulher dele há alguns anos é meio foda… Eu seria muito babaca se falasse que ele mereceu? E aqui Yuri, ele descobriu sobre o Júnior?” Instintivamente arremesso o celular contra a parede sem me preocupar de ir buscar depois. Fico ali sentado, calado, de cabeça baixa e olhando para o copo de cerveja quente remoendo meus sentimentos. Não sei quanto tempo mais passou, mas quando sinto o choro voltar, me levanto e pago a conta do bar. Já é noite e não vou pra casa, não quero chorar na frente das crianças.

* * *

A passos lentos, caminho pelas ruas escuras da cidade. Novamente, tendo como companhia apenas o silêncio e minhas lembranças. Andei sem saber meu destino e agora não sei ao certo onde estou. Na verdade, nem me importo em saber. A dor dentro do meu peito é gigante. Me sinto muito sozinho, triste e abandonado. De repente, alguém se aproxima rapidamente atrás de mim. Levanto os braços e digo: “Não tenho nada pra vocês levarem, escolheram o cara errado.” A resposta é a última coisa que me lembro: “Errado! Você é exatamente o que nós procuramos.

Abro os olhos com meus ouvidos tomados por um zumbido agudo e uma dor de cabeça forte. Recupero minha visão aos poucos, tudo escuro. Pareço estar em um cômodo pequeno, sentado e amarrado a uma cadeira. Conforme vou retomando a consciência, vou lembrando do meu dia… café da manhã rejeitado pelos meus filhos, demitido e humilhado, traído e rejeitado. É, afinal, aqui é onde mereço estar.

* * *

Escuto vozes vindo de outro lugar, talvez se eu conseguir me concentrar “… mas, cara, a gente precisava ter feito isso tudo mesmo?” uma voz feminina, doce e suave.

“Tinha que estar perfeito, o pagamento é alto” responde uma voz rude e rouca.

“Meses preparando esse cara. Nossa! Não queria estar na pele dele de forma alguma”

“Relaxa! O cliente vai adorar, está excelente. Exatamente como ele precisava”

“O cliente chegou, se comporte” a mulher diz.

* * *

“Onde está ele?” diz um terceiro ao longe.

“Onde está o pagamento?” a voz feminina novamente.

“Pega dentro do carro, e pode ficar com ele também. O documento do veículo está no porta-luvas.”

“O seu presente está lá trás. Só pegar.”

* * *

Ele estão falando de mim? Espera aí, como assim? Por que alguém iria me querer como presente e como assim eu fui preparado? Droga! Fui sequestrado por algum sádico maluco! Apesar do medo que toma meu peito em forma de uma forte dor, tudo é suprimido pela tristeza que carrego. Penso em gritar e tentar me soltar, mas não tenho forças. Posso acabar sendo morto e, quem sabe, não passa de um engano, não é?

A porta se abre, mas tudo continua escuro. Não consigo ver o rosto de quem entra, apenas escuto seus passos. Tento falar, mas minha voz não sai. Sinto algo rompendo minha pele, perfurando meu pescoço, espero a dor, mas não é isso que sinto. Meu corpo fica leve e aos poucos nada mais importa. Acabou.

* * *

Dentro da minha mente, uma disputa:

“Controle-se, somente o necessário. Ele não tem culpa de você ser um monstro”. “Do que você está falando, nós somos monstros! Somos um só e devemos agir como um. Temos fome então nos alimente. Se alimente por completo! Sacie nossa fome!”

O sangue quente dele desce por minha garganta trazendo todos os seus sentimentos. Me arrepio de prazer. Sinto sua vida passando para a minha. Tanto sofrimento. Mas só um sentimento me importa. A tristeza que está dentro do coração dele, alimentará minhas habilidades.

“Isso! Delicie-se… aproveite… beba, você quer mais, eu sei! Você quer tudo”

“Eu quero tudo!”

Tento me controlar, mas em vão.

“Eu quero tudo e terei tudo!”

A vida dele escorre para dentro do meu corpo, não tento mais retomar o controle. É tarde demais. O homem está pálido, morto.

Pego sua carteira e vejo sua habilitação. Seu nome é Sandro Hanns Pereira, trinta e quatro anos. Uma fotografia amassada cai de dentro. Ele, Amanda e meus filhos Junior e Vanessa… NÃO! Não são meus filhos. Mas éramos uma família feliz, eu me lembro de quando essa foto foi tirada. Aniversário de dez anos da Vanessa. DROGA! Os pensamentos do Sandro se misturaram com os meus, assim como suas memórias. Ele realmente amava sua família e fazia tudo por eles. Continuo revirando a carteira procurando entender quem era este homem que agora ecoa em mim por consequência de minha maldição. Encontro um cartão de acesso ao estacionamento. É do Marcos, perdi o meu na semana passada. Para muitos ele é o dono da empresa, para mim ele é como um pai, me acolheu e me empregou em um momento difícil onde estava desempregado e com um filho recém-nascido. Ele sempre foi paciente e me ensinou tudo que era necessário saber no mundo hostil da publicidade. Foi por isso que colocou o Victor comigo. O último dia foi horrível. Minha mente está em guerra. Mas ao menos a Besta se calou. Empurro o corpo para longe de mim, quero me afastar dele. Saio daquele lugar com vontade de me encolher em um canto e chorar. O que eles fizeram com o pobre Sandro?

* * *

Achei mesmo que os dois seriam eficientes só não imaginei o quanto. Ambos me encaram enquanto retiro do bolso a chave de meu carro, como prometido.

“Pronto, já recebeu sua encomenda e pela sua cara já utilizou. Agora passa pra cá nosso pagamento”. Apesar da voz suave de Marina, ela sabe ser intimidadora com o rosto em meio às sombras.

“O que vocês Fizeram com ele?” Digo tentando manter a postura.

“Somente o que você pediu. Temperamos ele deixando-o intensamente fleumático”.

“Ele amava sua família. Eles eram tudo pra ele, me diga como puderam fazer isso?”

“Fácil: um chamado do chefe para um cliente importante, uma ameaça de desemprego e, pronto, já estava esquecendo as datas importantes em família. Para o tal diretor foi um e-mail fake informando a possível mudança de empresa do Sandro.” Ela ri alto “Nosso Jeca é bom com computadores. E o carinha lá, amigo dele, Yuri acho, descobriu que seu amigo traía a esposa Amanda com garotos de programa. Era o que ele precisava para viver o amor que sempre suprimiu. Com ela, a solidão fez o restante do trabalho.”

“Como assim, eles estavam juntos há anos! Eu vi na mensagem da amiga dele, Jane.”

“Isso aí realmente deu trabalho. Roubar o celular da moça, mandar a mensagem a tempo dele ler e apagar na sequência. E ainda hackear o celular do Sandro para evitar dos amigos contatá-los foi complicado pra caralho! Mas valeu a pena, não? Você teve seu prêmio. Do jeitinho que nos pediu. Eu sei que ouvir as explicações pode acalmar as vozes, mas é melhor nos pagar logo e acelerar para seu destino, se não quer desperdiçar todo nosso trabalho”

Jogo a chave do carro pra ela, espero ela sair do galpão e me entrego a todos aqueles sentimentos, caminho até um canto do galpão em meio às sombras como meu mentor me ensinou. Me encolho quieto, imperceptível e abraço minhas pernas com o peso do mundo escorrendo pelo rosto em uma linha rubra, marcando descontroladamente e sem ser impedida, a expressão de desespero. Solitário. Encolhido no canto do velho galpão, tendo como a única segurança meus braços agora enrolados fortemente em minhas pernas. As lágrimas caem como um meteoro de encontro ao chão, sem testemunhas.

Um conto por Luiz Eduardo “Duds” Vilar

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