A Roda do Tempo vol. 2: A Grande Caçada (resenha)

Na música, dizem que o segundo álbum de uma banda é tão ou mais importante que o primeiro, pois é nele que a banda, superando a expectativa que cerca o álbum de estreia, mostra sua capacidade e começa a espalhar sua (boa ou má) fama, angariando fiéis e fanáticos seguidores.

Acredito que é possível transpor essa idéia para outros campos do entretenimento cultural, tais como cinema (em caso de filmes com continuação), seriados de televisão, histórias em quadrinhos e, porque não, na literatura.

No caso, estamos falando da épica, densa e massiva saga “A Roda do Tempo”, de Robert Jordan – lembrando que o primeiro volume da série, “O Olho do Mundo” (OOdM) já foi resenhado aqui no REDERPG. Abrindo breves parênteses, aproveito para também lembrar que a saga teve seu décimo terceiro volume publicado no final de 2010 (além de uma “prequência”) e que o último volume deverá ser publicado, no idioma original, em 2012, segundo o próprio Brandon Sanderson (o twitter da fera, que deu continuidade à saga após a morte de Jordan, é @BrandonSandrson).

O primeiro livro de uma série sempre é importante, porque é através dele que mergulhamos numa nova trama, num novo cenário, e que conhecemos e nos apaixonamos por novos e extraordinários personagens. Mas o segundo livro, ah, o segundo livro… É com ele que o autor mostra realmente a que veio. Neste caso, Robert Jordan, em “A Grande Caçada” (AGC), lançado em dezembro de 2010 pela editora Caladwin, chacoalha todos os conceitos que poderíamos ter feito no OOdM e deixa clara sua ambição: criar uma das maiores obras ficcionais de todos os tempos.

Digo isso porque, no primeiro volume, são muito claras as influências e “homenagens” ao ilustríssimo Professor Tolkien e a outras obras memoráveis da literatura fantástica, como Duna, Brumas de Avalon, Mitologias, etc. (há quem diga que, muitas vezes, Jordan cometa alguns exageros). Neste livro, o autor se desapega de suas fontes de inspiração e navega profundamente em sua própria criação, desbravando aspectos antes apenas esboçados no OOdM, aprofundando conceitos e introduzindo novos elementos fundamentais à trama. Este, aliás, talvez seja um dos maiores méritos de AGC: consolidar o “background” da série.

Não que tudo sejam flores. Por exemplo: após um começo arrebatador (como quase todos os livros da saga, este é aberto com um prólogo, amarrando arestas e indicando acontecimentos importantes e relacionados diretamente aos últimos acontecimentos do volume anterior; em AGC, é no prólogo que aprendemos o que os “caras maus” estão fazendo enquanto a história se desenvolve. Atenção a esta cena, pois alguns personagens aparecerão em outros livros!), a obra dá uma estagnada nos primeiros 4 capítulos. Além disso, a linguagem, por vezes, vai longe para descrever coisas simples (particularmente, adoro isso, mas muitos podem achar essa característica cansativa).

Outro ponto que não me convence muito é a contagem do tempo: as coisas caminham de forma cronologicamente “obscura” (na falta de melhor expressão), de modo a permitir que alguns personagens separados ao longo da narrativa se reúnam em determinado (e conveniente) momento.

Uma das grandes características iniciadas no AGC é a divisão das tramas e sub-tramas das personagens, que tendem a se tornar cada vez mais complexas no desenrolar da saga. A propósito, esse é um dos elementos de maior fascínio da obra toda, já que mantém cada vez mais clara e mais profunda a noção de que o mundo em que se ambienta a narrativa passa por um turbilhão generalizado; que os acontecimentos não são estanques ao redor dos personagens centrais, mas que borbulham por todo o continente – e além, muito além, dele! Jordan fez o que todo bom professor de história deveria fazer: deu vida e sincronia a todos os acontecimentos simultâneos da narrativa (bem diferente de estudar Antigo Egito, Grécia Antiga e povos da Mesopotâmia como se fossem coisas isoladas…). A propósito: essa noção de “realismo” (verossimilhança, para ser mais preciso, no sentido de que tudo acontece ao mesmo tempo) no universo fantástico é exatamente, em minha opinião, onde reside o diferencial da criação de Robert Jordan.

Em AGC não é diferente: a separação da trama em núcleos centrados em certos personagens (como, por exemplo, a frenética perseguição de alguns aos ladrões da Trombeta de Valere e da adaga de Shadar Logoth – o que, de certa forma, dá nome ao livro) é responsável por dar ritmo à narrativa, e por possibilitar que as personagens fiquem cada vez mais densas, maduras e complexas à medida em que vivenciam experiências únicas em relação umas às outras.

Longe de mim afirmar que os personagens são maduros e conscientes de seu lugar no mundo. Pelo contrário: muitas vezes eles ainda são irritantes, caipiras e infantis. Daí a graça do livro, vez que todos vão amadurecendo, uns mais rapidamente do que os demais. Ainda que o personagem principal seja o herói relutante que deve salvar o mundo, Jordan inova e nos deixa vestígios de que, no processo de salvação, ele irá quebrar o mundo novamente. O herói de Jordan deve ser temido e adorado ao mesmo tempo (e com o desenvolver dos próximos livros, isso ficará cada vez mais evidente).

É também em AGC que personagens até então secundários, terciários, assumem papel importante na saga. O mascate Padan Fain é a prova disso. Esse, aliás, um dos personagens mais intrigantes e interessantes da série (e um dos meus favoritos), já que nos mostra que, apesar da clara existência do Bem e do Mal na obra, muitos personagens estão num limbo cinzento, difícil de determinar (vale aqui uma dica: anote a profecia maligna que será feita e mantenha-a sempre por perto quando estiver lendo qualquer livro da saga. Esta profecia é de vital importância para toda a obra!).

Mas, interessante mesmo, é ver como as coisas vão se desdobrando e o que antes poderia parecer simples vai tomando uma proporção cada vez maior. Vemos lampejos de coisas que podem (e vão) se tornar fundamentais no desenrolar da narrativa, inclusive pontos geográficos que podem passar despercebidos. Note-se que os nomes também ajudam a contar a história, ainda que indiretamente, e por isso repito a orientação já dada na resenha de OOdM: grave bem os nomes das personagens e dos locais visitados ao longo da estória.

Rumores são coisas que não faltam nesta obra, e Jordan sabe explorar muito bem este ponto. Seremos introduzido ao Daes Daemar, o Grande Jogo, que nada mais é do que uma grande conspiração, um grande xadrez político, onde tudo o que alguém faz ou deixa de fazer é entendido como um movimento para prejudicar os outros e ascender na escala de poder. Lembre-se que a trama é ambientada numa era pré-industrial, onde a comunicação é difícil e as fontes de informações muitas vezes não passam de fofocas e boatos distorcidos.

O desfecho da obra é simplesmente indescritível e épico, com direito até a invasão de povo de além-mar (dica: interprete o sotaque desses personagens como sendo o de caipiras norte-americanos – rednecks –, que tudo fará mais sentido) e faz desse livro um dos mais importantes turning points de toda a saga. Não tenho vergonha de dizer que, junto com Ingtar (um dos personagens secundários) e a trinca de ta´veren, li os capítulos finais em meio às lágrimas.

Quanto ao trabalho da Caladwin: pode-se dizer que a versão brasileira é muito bem acabada, com uma diagramação bastante agradável à leitura, papel de boa qualidade e uma capa de material resistente (meus livros não combinam com minhas mãos, por uma questão de transpiração…). A capa é simples e reproduz o símbolo da Roda do Tempo, no mesmo esquema do primeiro volume, com uma cor diferenciada, lembrando bastante a edição inglesa.

Com relação à tradução, ainda não estou convencido da forma de falar de Domon e seus conterrâneos (povo de Illian). Tampouco me convenceu a tradução do nome da nação e da cidade de Tear, que no português passou a ser Lácrima. Mas, mesmo assim, a tradução é de um nível excelente e o trabalho dado aos adjetivos pátrios foi muito inteligente. Parabéns ao tradutor! Fico a me perguntar como ficarão as traduções de algumas expressões como balefire e Friend of the Dark (forma arcaica de Darkfriend – apesar de o significado ser obviamente o mesmo, temo que a sutileza na diferença entre as duas expressões originais inglesas possa ser perdida)… Vai dar algum trabalho!!

Concluindo: não bastasse uma trama bem construída, a forma como o autor vai inserindo cidades, culturas e personagens instiga o leitor a querer saber mais sobre cada um desses aspectos, o que isso representa no todo e o que alguns nomes (Aiel?) querem dizer. Ainda, temos o prazer de nos defrontar com um Robert Jordan científico e teorias de dimensões paralelas e realidades alternativas – tudo o que um físico mais deve gostar… Há de se alertar, porém, que o excesso de informações pode afastar alguns leitores mais objetivos, mesmo que todo esse conteúdo apenas deixe a obra mais densa e mais apaixonante.

Este livro colocou Robert Jordan definitivamente no topo dos livros de literatura fantástica de leitura obrigatória, e o trabalho de Brandon Sanderson tornou tudo ainda mais genial – mas isso ficará para um momento mais apropriado. Fato é: minha estante principal de livros tem Tolkien, Martin e, agora, Jordan. E parabéns à Caladwin por permitir que muitos brasileiros também adotem esse novo “livro de cabeceira”!

Em tempo: recomendo que procurem a obra na Moonshadows… Foi lá onde comprei meu exemplar, com um preço mais em conta. A editora vende no seu site e também é possível encontrar nas grandes livrarias, como a Livraria Cultura.

Notas (de 1 a 6)
– Trama: 5
– Texto: 5
– Narrativa: 6
– Nota Final: 5

 

Ficha Técnica
– Formato 16 x 23 cm
– ISBN: 978-85-99752-05-0
– Tradução de José Francisco Hillal Botelho (Mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul)
– 744 páginas

Por Franz Brehme

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