O Velho Rickard

O velho Rickard contornou o velho planador e deslizou o dedo pelo capô para avaliar a poeira que acumulava. O dedo ficou preto de pó. Ele o limpou na calça, afagou a pança, alinhou a barba grisalha e balançou a cabeça, desgostoso.

— Se me pagar bem, fico com ele — caçoou uma voz rouca, aguda e desafinada do outro lado da rua.

Rickard girou nos calcanhares para encarar o petulante. Sua boca se retorceu ao notar que se tratava de um wook que passava.

Nunca gostara daquele povo. De todos os povos da galáxia, os wook eram os piores. Há uma década, eles habitavam apenas um planetoide rochoso e abrasador nos rincões da galáxia. Estavam fadados à extinção, mas escravagistas de Pridomini os clonaram para explorá-los nas minas de enxofre de Maladon. E, após as guerras que se arrastaram nos últimos anos por aquelas bandas, os asquerosos “gafanhotos” escaparam dos grilhões pridominianos e se espalharam como uma praga por toda a galáxia. Uma praga de gafanhotos.

Tinham três pares de patas insetóides e andavam reclinados, apoiados por sobre um par de tenazes grandes e cruéis. Ultrapassavam os três metros de altura, tinham o corpo envelopado por uma carapaça pálida, a cabeça pequena e olhos bulbosos.

O Velho Rickard deitou o olhar por sobre o veículo novamente e suspirou. Era um modelo antigo, de cor branca. A tinta estava descascada aqui e ali, dando lugar à ferrugem. Tinha asas pequenas, turbina traseira central e cabine elíptica com dois assentos. O velho Rickard abriu o capô, levantando poeira. Correu os olhos pelo velho motor a combustão e suas peças antiquadas. O fechou frustrado, num baque metálico.

Era final de tarde em Narboneo. O céu estava carmesim, rajado por longas e estreitas nuvens púrpuras. As primeiras estrelas da noite já cintilavam na porção mais escura do horizonte ocidental. Um grande cargueiro valentiniano cromado pairou nos céus, baixo e pesado, silencioso como um predador. Uma grande sombra correu ligeira pelas ruas abaixo, acompanhando a nave.

— Posso ir, senhor? — perguntou o moleque que o auxiliava com as tarefas no serviço, despertando-o da distração. — Já terminei tudo lá dentro.

— Apenas me ajude a guardar este saudoso guerreiro — sorriu. — Já está velho demais para o deixarmos aqui fora durante a noite.

O garoto forçou um sorriso para não desagradá-lo.

— Conseguiu as peças para arrumá-lo, senhor?

— Nada ainda. — Puseram-se na traseira do veículo e se prepararam para empurrá-lo. — Um, dois, três e…

Os dois se esforçaram para empurrar o veículo até a garagem atulhada de quinquilharias. Tinham as mãos pretas da poeira e os rostos enrubescidos pelo vigor.

O garoto bateu as mãos na camisa para se livrar do pó, olhou do planador para o velho Rickard e sorriu suado e ofegante.

— Olhando assim, senhor, com essa pintura branca e essa carapaça, esse planador até se parece com um wook, não?

A expressão do velho se azedou. Sua boca se contorceu dum sorriso para uma carranca num instante. Um silêncio desconfortável se instalou.

— Vá embora logo, garoto — disse enfim, ranzinza. — Não quero que sua mãe reclame comigo por ter chegado tarde.

O garoto engoliu seco, desconcertado, e se afastou.

Sozinho na garagem escura, o velho Rickard encarou novamente o veículo. O planador foi uma herança que o pai deixara quando faleceu há mais de dez anos atrás. Lembrava-se de como o velho gostava do veículo. Trazia-lhe boas lembranças. Recordava-se de quanto o pai trabalhou para conseguir comprá-lo numa feira de usados em Nova Cerúlea. Usava o carro para trabalhar, mas nos fins de semana eles saíam para passear. Conheciam novos lugares, visitavam os velhos, faziam piqueniques, pescavam, acampavam, admiravam o pôr-do-sol. Lembrava-se do ronco deselegante do motor e das risadas que deram a bordo daquele velho companheiro.

— Foi um bom amigo — sussurrou o velho Rickard e flagrou-se sorrindo para o planador. Tinha os olhos marejados por lágrimas. — Não se parece um wook.

Pegou o estojo de ferramentas que estava por sobre o banco, olhou ao redor para se certificar que não estava se esquecendo de nada, pegou um chapéu num gancho, apagou as luzes e desceu a porta basculante da garagem.

Era noite cerrada lá fora. O firmamento estava pontilhado com um milhão de estrelas. A lua de Sebaah estava nascendo no horizonte àquela hora, gorda, dourada e majestosa. A rua estreita da periferia de Narboneo estava solitária, sombria com a mortiça iluminação que emanava dos postes. O centro comercial, ao longe, estava preenchido com as luzes de seus tantos arranha-céus, altivos em seus designs arrojados. Os faróis de incontáveis planadores zanzavam ao redor dos edifícios distantes como um enxame de vagalumes multicoloridos.

O velho Rickard vestiu o chapéu e caminhou noite adentro rumo à sua casa. Mais um dia chegava ao fim. Era hora de descansar um pouco.

 

Por Rafael Quadros

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