D&D: Teatro da Mente ou Como jogar D&D sem grid

Meu primeiro contato com o D&D de alguma forma foram os livros-jogos da série do Ian Livingstone, especificamente O Feiticeiro da Montanha de Fogo. Pouco tempo depois, estava jogando Hero Quest repetidamente e ficava fascinado com aquele tabuleiro e suas mobílias e miniaturas de papel e plástico. Havia mil possibilidades ali. Tive um breve contato com o AD&D (confesso que nunca entendi como funcionava o THAC0). No entanto, foi de fato a 3ª edição de D&D que me prendeu de vez, primeiro como jogador e depois como Mestre de Jogo. Tanto que, mesmo com a 4ª edição, continuei jogando a 3ª (eventualmente Pathfinder).

Jogadores que vieram da 3a ou 4a edição de Dungeons & Dragons podem ter ficados surpresos com a (quase) ausência na 5ª Edição de um elemento muito comum nas anteriores: o grid de batalha. Nas primeiras campanhas da atual edição que mestrei, esse elemento visual tão fundamental das edições anteriores ainda persistiu, até porque os jogadores também tinham suas histórias e costumes com o grid. Quando comecei uma mesa nova, com jogadores menos experientes, percebi que tinha menos tempo disponível para preparação e optei pelo teatro da mente. Minha surpresa foi enorme em relação à fluidez do jogo que a nova edição se pretendia. Hoje, posso afirmar que o teatro da mente é a minha forma preferida de jogar D&D.

MAS, AFINAL, O QUE É O GRID DE BATALHA?
Trata-se de uma superfície marcada com quadrados de uma polegada (1,5 cm aproximadamente), usada para acompanhar a localização de criaturas e personagens (normalmente com miniaturas) durante o combate e outras situações táticas.

O grid pode ser um simples pedaço de papel quadriculado ou um material plástico apropriado para se desenhar em cima e apagar depois. Junto com as miniaturas, o grid tem sido um recurso vastamente presente nos últimos 20 anos do jogo, além de uma fonte extra de receita para os fabricantes.

UMA BREVE HISTÓRIA DO GRID
Este artigo não tem intenção de traçar uma história exaustiva do uso do grid no D&D. Olhemos rapidamente sobre o que cada edição de D&D diz sobre o uso do grid de batalha.

1ª Edição e anteriores
Originalmente, as primeiras edições de D&D não mencionam o grid de batalha. Pelo menos, não da maneira como estamos acostumados hoje em dia. Os livros detalham como funcionam as distâncias, as medidas, os alcances das armas e magias. Porém, não mencionam diretamente nada parecido com o papel quadriculado que usamos atualmente. Como o jogo tem na sua origem os Wargames, o uso de miniaturas já era vastamente previsto desde sua concepção, como podemos ver na introdução do livro Chainmail, o pai do D&D, criado por ninguém menos que Gary Gigax (tradução direta):

“Para jogar um wargame, é necessário ter as regras, figuras em miniatura e equipamento de acompanhamento, um espaço para jogar e terreno para colocar as coisas por cima.

Não há dúvidas de que você cumpriu o primeiro requisito, pois você comprou este conjunto de regras. Suas tropas podem ser de qualquer escala que você desejar. A área de jogo em que as batalhas serão travadas deve ser uma mesa em vez do chão. Pode ser de um mínimo de 4′ (pés) a um máximo de 7′ de largura e deve ter pelo menos 81 (polegadas) de comprimento. Estes tamanhos asseguram uma ampla margem de manobra. Existem vários métodos para descrever os recursos do terreno geralmente usados para nomes de pessoas, como colinas, bosques, rios, estradas, etc.”

Gygax tinha em mente o uso de maquetes, um passatempo muito comum naquela época. Os livros descrevem as minúcias de cada tipo de terreno, mas não sugerem o uso de grid quadriculados para batalhas.

2ª Edição
A segunda edição de D&D, também conhecida como Advanced Dungeons & Dragons (AD&D), informa a necessidade de se comportar os seguintes itens em uma típica sessão de jogo:

“Physically, the players and referee (the DM) should be seated comfortably around a table with the referee at the head. Players need plenty of room for papers, pencils, dice, rule books, drinks, and snacks. The referee needs extra space for his maps, dice, rule books, and assorted notes.”

Assim como a edição anterior, o AD&D também se apoia de maneira razoável no uso de miniaturas para facilitar as batalhas. Mesmo assim, a maior parte das batalhas aconteciam na imaginação dos jogadores:

“Miniature figures are handy for keeping track of where everyone is in a confusing situation like a battle. These can be as elaborate or simple as you like. Some players use miniature lead or pewter figures painted to resemble their characters. Plastic soldiers, chess pieces, board game pawns, dice, or bits of paper can work just as well.”

Embora tenha aparecido em alguns suplementos de Adventure Pack, o grid não seria mencionado em regras oficiais até o lançamento do suplemento Combat and Tactics (que viria a ser reconhecido de maneira não-oficial como AD&D 2.5), em que se faz a menção explícita do chamado “Mapa de Batalha” (Battle Map) com quadrados representando medida de 5 pés (jogadores de países que utilizam sistema métrico teriam que utilizar uma matemática extra para calcular decimais).

“The Player’s Option combat system is played on a gridded battle map with 1-inch squares. The battle map becomes a diagram of the battlefield that can be used with figures, stand-up counters, or markers. The exact location of each character or creature is important, since facing and terrain are critical to the tactics of a fight.”

Esse suplemento serviu como uma das bases para o que viria a ser a terceira edição do jogo.

3ª Edição
Após a aquisição da TSR (empresa que lançou originalmente o D&D) pela Wizards of the Coast, foram previstas diversas novas linhas de produtos, além dos livros de RPG, tais como miniaturas (futuramente com suas próprias regras de jogo), boardgames, expansão da linha de literatura, filmes (com graus polêmicos de sucesso, para dizer o mínimo) e, claro, o grid. Mas não apenas o papel quadriculado que acompanhava o Livro do Mestre, mas também modelos e modelos de tiles diferentes como deserto, pântano, floresta, cenário urbano, masmorras, cavernas e afins.

Pela primeira vez, o grid é explicitamente mencionado no Livro Básico logo no início, na sessão de “O que você precisa para jogar” (com um sutil incentivo para que cada jogador comprasse seus próprios livros):

“Your group needs these items to play D&D.
• The Player’s Handbook, Dungeon Master’s Guide, and Monster Manual revised core rulebooks. (All players might want to have their own copies of the books.)
• A copy of the character sheet at the back of this book for each player.
A battle grid. The Dungeon Master’s Guide contains one.
• Miniatures to represent each character and the monsters that challenge them.
• A set of dice for each player. A set of dice includes at least one four-sided die (d4), four six-sided dice (d6), one eight-sided die (d8), two ten-sided dice (d10), one twelve-sided die (d12), and one twenty-sided die (d20).
• Pencils, scrap paper, and graph paper to keep notes and to map the locations your characters will explore.”

Foi também a primeira vez que se definiu a escala do grid: um quadrado de uma polegada representaria uma área de 5 pés quadrados. Mais uma vez, o sistema imperial se apresenta com números inteiros. A tradução para português usaria 1 quadrado = 1,5 metro, o que aparentemente ajudava nas habilidades de matemáticas dos jogadores brasileiros.

“To help visualize events in the fictional world of the D&D game, we recommend the use of miniature figures and a battle grid. A battle grid, such as the one provided in the Dungeon Master’s Guide, consists of a grid of 1-inch squares. Each of these squares represents a 5-foot square in the game world.”

Além disso, diversas regras foram criadas ou incorporadas tendo o grid como parte fundamental: ataques de oportunidade (e centenas de talentos dedicados a essa regra), flanquear, a regra do passo de 5 pés (para evitar ataques de oportunidade), movimento na diagonal (que custava 1 quadrado e meio, tornando a matemática brasileira ainda mais difícil), cobertura (e infinitas discussões sobre a linha de visão de um personagem contra uma criatura para lançar uma flecha), alcance das armas, magias de área, tamanho das criaturas e área ameaçada e muito mais.

O grid de batalha não era apenas um acessório opcional, era parte fundamental do jogo, recomendada pelos próprios criadores no livro básico. No livro em inglês, a palavra “grid” é mencionada em 17 páginas além de ter gráficos e imagens explicando diversas combinações diferentes de movimento, alcance e área.

A 3ª edição foi um sucesso comercial estrondoso, com dezenas de suplementos lançados ao longo de vários anos e ainda é amplamente jogado por muitos jogadores. Não é à toa que o grid se tornou parte fundamental do D&D a partir dessa edição.

O Pathfinder, produto derivado da 3ª edição lançada pela concorrente Paizo, aproveitou a licença aberta do D20 para lançar sua própria linha de produto e aproveitar o vácuo criado pelo D&D 4ª edição. Essencialmente, o uso de grid é o mesmo, mas com uma ênfase um pouco menor (embora com a mesma sutileza comercial de vender vários tipos de produtos diferentes), inclusive abrindo para a opção de “teatro da mente”:

“Combat in the Pathfinder RPG can be resolved in one of two ways: you can describe the situation to the characters and allow them to interact based on the description you provide, or you can draw the situation on a piece of paper or a specially made battle mat and allow the characters to move their miniatures around to more accurately represent their position during the battle. While both ways have their advantages, if you choose the latter, you will need a mat to draw on, such as Paizo’s line of GameMastery Flip-Mats, as well as miniatures to represent the monsters or other adversaries.”

4ª Edição
Curiosamente, os textos introdutórios da 4ª edição de D&D reforçam muito a ideia de que o jogo “acontece na imaginação dos jogadores”, mais do que ocorre no livro da 3ª edição. Isso fica mais claro quando o grid não está na lista das coisas que são necessárias para jogar e sim como acessórios adicional, junto com as miniaturas (além de convenientemente sugerir que cada jogador tenha uma cópia de cada um dos 3 livros básicos e fazer jabá básico dos seus próprios acessórios).

“The action of the game takes place mostly in your imagination, but you still need a few “game pieces” to play D&D.
• Player’s Handbook: Every player needs a Player’s Handbook for reference.
• Dungeon Master’s Guide and Monster Manual: The Dungeon Master needs a copy of each of these books (and players might also enjoy perusing the contents).
• Dice: The DUNGEONS & DRAGONS game requires a special set of game dice (see the sidebar).
• Character Sheet: To keep track of all the important information about your character, use the character sheet at the back of this book, or check out www.dndinsider.com.

You might find some of the following items and accessories useful at your game table.
• Miniatures: Each player needs a miniature to represent his or her character, and the DM needs minis for monsters. Official D&D® Miniatures are custom-made to be used with the D&D game.
• Battle Grid or Dungeon Tiles: Combat in D&D plays out on a grid of 1-inch squares. You can pick up an erasable battle grid at many hobby game stores, or try D&D Dungeon Tiles—heavy cardstock tiles that can be set up to create a wide variety of locations—or you can create your own grid.”

Apesar da ênfase menor, o jogo é fortemente baseado no uso do grid, uma vez que muitos dos poderes das classes têm um foco muito grande na tática. A própria formalização dos papéis de cada personagem (tanker, striker, controller, etc) denota o grid ainda como parte fundamental do jogo.

5ª Edição
A mais recente edição de D&D é uma tentativa (bem sucedida, na minha opinião) de trazer alguns elementos das primeiras edições de volta ao jogo e diminuir o foco exagerado nas regras das edições mais recentes. Entre diversas mudanças interessantes, o grid chama a atenção de quem começou a jogar com a 3a ou 4a edição justamente por sua ausência.

O grid é apresentado no Player’s Handbook da 5ª edição como uma regra variante dentro de um mero box e ainda assim de maneira simplificada. Diminui-se também a importância do grid das várias regras existentes da 3ª edição como ataque de oportunidade (só ocorre quando sai de uma área ameaçada por completo), movimento (diagonal não tem contagem diferente).

Regras adicionais estão presentes apenas no Dungeon Master’s Guide com mais detalhes sobre o uso de miniaturas, a utilização da diagonal custando mais movimento e apresentando o flanco como regra opcional, além de magias de área, linha de visão e cobertura.

“In combat, players can often rely on your description to visualize where their characters are in relation to their surroundings and their enemies. Some complex battles, however, are easier to run with visual aids, the most common of which are miniatures and a grid. If y like to construct model terrain, build three-dimension dungeons, or draw maps on large vinyl mats, you should also consider using miniatures. The Player’s Handbook offers simple rules for depicting combat using miniature figures on a grid. This section expands on that material.”

Os criadores do jogo decidiram abandonar o excesso de tática presente na edição anterior para focar mais na imaginação e interpretação dos personagens e menos no preto no branco das táticas, conforme o próprio lead designer mencionou em seu tweet:

Agora que já sabemos um pouco sobre a história do grid e de como ele foi deixado de lado na última edição, vamos ver como o Mestre de Jogo pode conduzir aventuras e batalhas sem nunca precisar do mapa de batalha e nem de miniaturas.

COMO JOGAR COMBATES EM D&D SEM USAR GRID DE BATALHA
Confesso que foi estranho mestrar a 5ª edição e perceber que várias das regras consagradas da 3ª eram opcionais (como assim não tem mais flanquear?). Em uma das minhas mesas, optei pela simplicidade e fiquei muito surpreso com a dinâmica das batalhas quando não se usa grid. Após mais de dez sessões, pude consolidar alguns aprendizados.

Foco na Descrição
A descrição é muito mais importante no teatro da mente. Na ausência de elementos visuais na mesa, os jogadores e Mestres dependem muito mais da narrativa para entender a situação de batalha. Ao Mestre cabe explicar a situação em graus suficientes de detalhes, como quantos combatentes, suas posições, algum fato descritivo de cada oponente (para evitar coisas do tipo “Orc 1”, “Orc 2”, etc). Ao jogador cabe descrever em mais detalhes suas ações. A batalha tem o potencial de ficar bastante complexa quando se tem um número grande de inimigos. Eu diria que, com até 6 oponentes, é possível jogar sem grid tranquilamente.

Foco na intenção dos personagens: Estimule os jogadores a descreverem suas intenções. Sem o grid de batalha, a luta ocorre inteiramente na mente dos jogadores e isso abre caminhos para decisões mais criativas (“Vou provocar aquele minotauro para que ele avance na minha direção, sem que ele saiba que tem um grande buraco atrás de mim”). O Mestre precisa ser justo com o resultado dessas decisões. Na dúvida, o dado decide.

Distâncias, movimentos e ataques de oportunidade: No teatro da mente, a definição de distância entre os participantes do combate pode ser tornar bastante subjetiva. Na minha mesa, consegui resolver bem a questão com duas técnicas muito simples. A primeira foi adotar o sistema de movimentos do RPG de Star Wars, em que o mestre descreve a distância com “Perto” (corpo a corpo), “Longe” (ataque a distância sem desvantagem), “Muito longe” (ataque a distância com desvantagem) e “Inalcançável”. Os jogadores podem mover de um para o outro gastando o movimento, ou podem mover dois graus de distância usando a ação Correr (dash action). Por exemplo, o jogador pode mover de “Muito longe” para “Longe” e depois atacar com um arco. Ou esse mesmo jogador pode move de “Muito longe” para “Perto” usando movimento e a ação Correr.

A segunda técnica foi usar um post-it para representar cada oponente. Cada jogador usa um marcador (uma miniatura, token ou moeda) para decidir se está longe (marcador em cima da mesa) ou em combate corpo-a-corpo (marcador em cima do post-it). Sair do post-it causa ataques de oportunidades.

Efeitos de área: Como fica a famosa bola de fogo e outros efeitos de área? O próprio Dungeon Master’s Guide apresenta uma solução para áreas de efeitos de magias sem o uso do grid: o número de criaturas impactadas. Inclusive é apresentado uma tabela de como calcular esse número. O cálculo preza mas pela simplicidade e menos pela precisão espacial do campo de batalha. Uma coisa curiosa é que o grupo passou a usar menos magias do tipo bola de fogo para privilegiar ilusões e outras magias mais táticas de batalha. Achei que o combate ficou menos previsível e muito mais divertido (as bolas de fogo continuam acontecendo, posso garantir).

Narrativa em geral: Com a ausência do grid, os personagens têm menos margem para adivinhar as intenções do Mestre (“opa, o mestre está colocando o grid na mesa. Vai rolar batalha”) e passei a ter mais oportunidades de surpreender o grupo com lutas que não estavam esperando.

Conclusão
Em minha outra mesa de 5ª edição em que sou jogador, nosso Mestre de Jogo faz um forte uso do grid, usando miniaturas personalizadas e mapas detalhados. Confesso que adoro jogar dessa forma e me ajuda a visualizar o contexto de maneira clara.

Porém, também recomendo que os Mestres considerem o uso do teatro da mente também. Talvez uma boa ideia seja usar o grid para batalhas mais importantes (os famosos chefes de fase) e deixá-lo de lado nas demais batalhas.

Por Bernardo Barlach
Equipe REDE
RPG
Twitter: @bbarlach

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