In Nomine (resenha)

Finalmente um dos grandes títulos do RPG mundial dá as caras no Brasil: In Nomine, licenciado da Steve Jackson pela Dimensão Nerd. Esse grande título tem uma história curiosa. Foi criado nos anos 1990 inspirado em um outro jogo chamado In nomine Satanis/Magnas Veritas, um jogo francês mais antigo, dos anos 1980.

A ideia central do jogo é familiar: os Celestiais são os anjos e demônios que lutam uma guerra sangrenta há milhares de anos pela dominação da realidade, aqui chamada de Sinfonia.

O cenário é muito bem construído e consegue hospedar histórias bem diferentes como, por exemplo, algo com o humor leve e satírico de Good Omens, o livro de Neil Gailman e Terry Pratchet em que um anjo e um demônio se unem para evitar o apocalipse simplesmente porque eles gostam da comida e diversões terrenas. Ou talvez uma sátira ácida com toques de violência como a que vimos no filme Dogma. Ou, enfim, se seu grupo é mais chegado na pancadaria, o jogo também permite com facilidade uma estória no melhor espírito de Spawn, onde demônios são máquinas de violência e ódio, enquanto os anjos são pouca coisa melhor.

D666!
Não deixe o selo Steve Jackson te enganar, o sistema é simples e, mesmo o jogo tendo praticamente 20 anos em sua versão ianque, tem uma cara moderna, onde realismo e complexidade são postas de lado em favor de um sistema dinâmico que permite um foco na história e não nas regras.

A coisa mais especial do sistema é o d666, são 3 dados de 6 lados usados para testar quase tudo no jogo, somando-se o resultado de dois dos dados e comparando com uma dificuldade para cada rolagem. O terceiro dado, que deve sempre ser diferenciado, dá o tamanho do sucesso ou fracasso. Aqui é o grande diferencial: um resultado 6 6 6, o número da besta, é uma intervenção demoníaca, enquanto um resultado 1 1 1, representando a santíssima trindade, é uma intervenção divina. Como se dá essa intervenção fica ao cargo do Mestre de Jogo, mas é sempre espetacular e obviamente sobrenatural como um Príncipe Demônio literalmente vindo do Inferno e lutando contra ou a favor dos jogadores, ou um personagem caído ser miraculosamente ressuscitado e assim por diante.

Os atributos são 6, divididos em três categorias: Corpórea, dividido em Força e Agilidade; Etérea, com Inteligência e Concentração; e por último, Celestial, compreendendo Vontade e Percepção. Bem simples e direto ao ponto. Continuamos com Habilidades, o livro traz algumas dezenas de habilidades que são também de fácil compreensão, como Química, Escalada, etc. As rolagens são feitas somando o atributo e a habilidade e tentando tirar menos que isso nos dados.

Existem mais combinações de Celestiais, Horácio, que sua filosofia ousaria sonhar.

Antigamente todos os anjos viviam felizes sob o comando de Deus, em uma sinfonia perfeita. Porém, um dia Lúcifer e seus comparsas se revoltaram contra a ordem das coisas, contra a vontade divina, e planejaram uma rebelião. Uma grande batalha aconteceu e os traidores foram banidos do Céu e condenados a viver no Inferno, vítimas de seus próprios pecados e rebeldia.

Existem dois conceitos básicos importantes: Sinfonia e Palavra. A Sinfonia é uma alegoria para o funcionamento da realidade, mas vai além. Todos os mundanos, isto é seres humanos normais, fazem parte da Sinfonia, emitindo notas harmônicas com suas ações, dando prosseguimento a ela. Uma freira que dá de comer a um mendigo da prosseguimento à Sinfonia, assim como um serial killer que degola a sua vítima. Quando um celestial age, ele cria uma nota dissonante na Sinfonia. O quão dissonante ela é vai depender de quão dramática ou fora do padrão é a ação. Essas notas dissonantes são percebidas por outros celestiais e por mortais que sabem como procurar. Isso, então, cria uma certa necessidade de agir através de mundanos e, quando não é possível, agir de maneira discreta. É uma bela maneira de evitar que os personagens saiam jogando raios uns nos outros no meio da avenida principal.

Já as Palavras são conceitos que um celestial protege e do qual obtém seu poder. Como por exemplo, um anjo ligado a “Livros” protegerá todos os conceitos ligados a essa Palavra e fará de tudo para torná-la mais importante. Quão mais poderoso é o celestial, mais poderosa é a Palavra ligada a ele: personagens iniciais não possuem uma Palavra, celestiais veteranos, mas não poderosos, possuem Palavras de pouco poder (como “Roubo a mão armada”, “Abraço materno” ou, se o grupo é mais engraçadinho, Palavras como “Panelas” e “Leite azedo” também são possíveis). Já os comandantes e generais dos celestiais, os Arcanjos do lado divino e Príncipes Demônios do lado infernal, possuem Palavras de imenso poder. A lista é a seguinte:

Arcanjos
• Blandine: sonho
• David: pedra
• Dominic: julgamento
• Eli: criação
• Gabriel: fogo
• Janus: vento
• Jean: raios
• Jordi: animais
• Laurence: espada
• Marc: trocas
• Miguel: guerra
• Novalis: flores
• Yves: destino

Príncipes Demônios
• Andrealphus: lúxuria
• Asmodeus: jogo
• Baal: guerra
• Beleth: pesadelos
• Belial: fogo
• Haagenti: gula
• Kobal: humor negro
• Kronos: destino
• Malphas: facções
• Nybbas: mídia
• Saminga: morte
• Valefor: furto
• Vapula: tecnologia
• Lilith: liberdade

Celestiais devem estar sob o comando de um da lista acima e devem trabalhar para empoderar a Palavra de seu líder. O jogo traz algumas coisas interessantes, como palavras compartilhadas. Um celestial nunca trabalha contra a sua própria palavra e pode ocorrer de demônios e anjos que compartilham a mesma palavra tenham interesses em comum, criando uma oportunidade bem interessante de jogo. Importante lembrar que o estilo de jogo pode variar pesadamente apenas baseado nas escolhas dos Príncipes Demônios ou Arcanjos. Um grupo composto por seguidores de Eli, Novalis e Blandine terá um estilo completamente diferente de um grupo com seguidores de Dominic, Laurence e Miguel. O mesmo vale para o lado demoníaco!

Algumas Palavras são extremamente interessantes e dão uma renovada no tema, principalmente do lado demoníaco como Kobal (humor negro), Nybbas (mídia) e Vapula (tecnologia) vão fazer os jogadores pensar no real papel de coisas vistas como positivas na nossa realidade.

Os celestiais são também divididos entre coros, no caso dos anjos, e bandos, na versão demoníaca. A escolha do Príncipe Demônio/Arcanjo se relaciona à ideologia e interesses do celestial. Já o bando ou coro é uma questão mais profunda, é uma questão racial, uma questão de essência.

Existem 8 coros e 7 bandos, sendo os bandos uma corrupção dos coros divinos, uma vez que todos os demônios, à exceção das filhas de Lilith, as Lilins, foram anjos que caíram. A lista é a seguinte:

Serafins, os mais sagrados, incapazes de mentir, opostos pelos Balserafins, paranóicos egocêntricos incapazes de dizer a verdade.
Querubins, guardiães dos mais fracos. Sua imagem corrupta, os Gênios são incapazes de verdadeiramente importar com qualquer coisa.
Ofanins, em eterno movimento, seus caídos se tornaram os Calabins, a personificação da destruição impensada.
Elohins, em perfeito comando de suas emoções, imparciais e objetivos. Quando caem se tornam os terríveis Habbalah, escravos de seus sentimentos e preconceitos.
Malakins, os virtuosos, honrados. Nenhum Malakim caiu, e se caiu, foi destruído por seus irmãos antes que pudesse se juntar às hordas infernais.
Kyriotetes, e seus opostos, Shedins, são ambos uma massa disforme em suas formas celestiais, tendo que possuir mundanos para agir no mundo físico.
• Mercurianos e Impuditas, são os celestiais mais ligados à humanidade, preferindo viver entre eles.

Além desses temos as Lilins, filhas de Lilith. Lilith foi criada para ser a primeira mulher de Adão. Rejeitada, passou a eternidade livre, até que Lúcifer lhe ofereceu um poder demoníaco e a Palavra “Liberdade”. Desde então, Lilith e suas filhas, as Lilins, fazem parte das hordas demoníacas, agindo com uma maior liberdade e independência do que qualquer outro celestial.

Por fim, o Oitavo Coro Divino, Grigori. Esses gigantes eram pastores da humanidade e foram os primeiros a se corromperem ao se mistura com os humanos, gerando descendentes, os Filhos de Gregori. Esses meio humanos, meio celestiais são raríssimos e possuem poderes especiais. Odeiam os demônios e não veem os anjos com bons olhos.

A combinação entre coro/bando e Arcanjo/Principe Demônio dará muito do sabor de cada personagem. E são centenas de possíveis combinações. Claro que nem todas essas combinações são viáveis e interessantes, mas, ainda assim, vai ser difícil cada jogador não encontrar uma combinação que os agrade. E o livro dá abertura para novos coros/bandos chamando os 8 apresentados no livro de “principais”.

Toda essa variedade faz um jogo que tem uma premissa relativamente simples se tornar variado e interessante, mesmo se excluirmos a possibilidade de jogar com não celestiais, o que provavelmente a grande maioria das mesas fará.

ANJOS, DEMÔNIOS, SOLDADOS… E ZUMBIS?
Nem só de celestiais vive In Nomine. Existem propostas para se jogar com Vampiros, Múmias, Soldados (que seriam humanos com poderes angelicais/demoníacos) e até mesmo humanos comuns, os chamados “mundanos”.

Além de ser uma oportunidade interessante para um jogador experiente tentar interpretar algo novo, é difícil ver o apelo de tais categorias. São objetivamente bem, mas bem mais fracos que os celestiais, do ponto de vista de regras e mesmo do ponto de vista da ambientação, sendo coadjuvantes no livro básico. Na gringa existe um suplemento que adiciona bastante aos chamados “Corpóreos”, o Corporeal Player’s Guide (O Guia do Jogador de Corpóreos), mas enquanto esse livro não desembarcar por aqui, mortais são pouco mais do que um adendo ao livro.

CANÇÕES
Canções são os poderes celestiais, anjos e demônios têm as mesmas escolhas de canções. A maioria das canções tem três versões: Corpórea, Etérea e Celestial, cada versão tendo um efeito diferente e deve ser aprendida separadamente.

O livro básico fornece 14 canções, a maioria tendo 3 versões, o que será, sem dúvida, mais que o suficiente para a grande maioria dos grupos.

MORAL DA HISTÓRIA
In Nomine é sem dúvida um jogo belíssimo. Seu sistema de regras envelheceu bem, possivelmente cairá no gosto dessa nova geração que odeia tabelas.

O tema pode desagradar jogadores mais religiosos, contudo a flexibilidade é enorme. Grupos mais ousados encontrão ferramentas para explorar temas complexos em seu jogo e grupos mais casuais não precisam se preocupar em perder qualquer parte importante do cenário ao evitar os assuntos mais espinhosos.

E a eterna guerra entre o Céu e o Inferno nunca vai sair de moda.

Por Rafael Verolla
Equipe REDE
RPG

Vocês também podem conferir a vídeo-resenha sobre o In Nomine:

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