Mutant: Ano Zero – Interpretando papéis: O Escravo

“Veda passou sorrateiramente pelos vigias da porta, desceu pela velha escotilha e esgueirou-se pelo corredor escuro até a porta reforçada onde escutava o choro quase silencioso de Vanessa. Não era raro que arriscasse sua própria vida pelos minutos que poderia passar com a escrava, não suportava vê-la naquele confinamento úmido e tenebroso, que se somava a todo sofrimento que o mundo caótico e podre impunha sobre eles, mas Vanessa era o grande amor de sua vida, era tudo que tinha e não iria abandoná-la. Ia matar o chefão e libertá-la, devolveria a liberdade que ainda criança havia perdido por sua causa, mas não poderia errar, não poderia deixar rastros. Do outro lado, depois de minutos de silêncio, pedindo por uma simples palavra, apenas para ouvir sua voz, escutou o arrastar das correntes pesadas:

– Sei que não vai me responder, sei que está aí, mas não será por muito tempo, quando acabar com o patife nós seremos livres e partiremos daqui.

Retirou da pequena bolsa uma das pequenas bolinhas de vidro que havia encontrado em sua última excursão pela zona e rolou por baixo da porta, ouviu novamente o arrastar das correntes e afastou-se. Aquilo não poderia continuar, tinha que pôr um fim naquele pesadelo.”

Olá, companheiros e companheiras dessa longa jornada pelo ermo! Mesmo no arrasado ano zero de Mutant, o que levaria um jogador a optar por interpretar um escravo? Talvez esse seja o jeito certo de começar porque nunca presenciei um jogador olhar para a habilidade e os talentos do escravo sem torcer o nariz e pensar no quão péssimo seria uma vida sem liberdade, mas talvez esse seja o ponto mais profundo de imersão que o papel pode oferecer nessa experiência de jogo.

Vários motivos podem ter levado seu personagem a essa condição: a perda de alguém que amava o deixou sem motivos para continuar sua caminhada e viver sob a tutela de seu dono o fez seguir em frente, ainda que os outros não entendam sua escolha. Pode ser que sua escravidão seja o preço de uma dívida impagável ou quem sabe você até mesmo tenha nascido escravo ou sequer se lembre que um dia teve alguma liberdade. Vanessa escolheu sua condição para proteger a vida de Veda Junta, enquanto aceitasse se submeter aos caprichos do chefão sua amada viveria. Por fim, ser escravo em um mundo arrasado pode assustadoramente ser uma posição de conforto, ter a proteção de alguém poderoso, ter alguém que o sustente com grude, água e balas pode não ser nada mal, mesmo que seja até o dia em que você não precisar mais de seu dono, eis uma grande motivação.

E se todas as motivações acima não movem seu coração pós-apocalíptico, quem sabe um passeio pela história da escravidão ajude, nesse caso podemos falar até em escravidões. Sim, a escravidão romana não era como a escravidão colonial brasileira. É bem legal que jogadores e Mestra de Jogo conversem sobre a escravidão na arca, como chegamos a esse ponto de escravizar nossos iguais em um mundo já tão desolado e o quão legitimado isso é pelo povo da arca? Há grupos rebeldes que lutam contra a escravidão? Escravidão no mundo de Mutant não é apenas um papel, é um poderoso elemento do universo e tudo isso tende a ganhar corpo e ficar ainda mais tenso quando desenvolverem o projeto mercado de escravos. Então, quem sabe existirão os escravos de estimação e os escravos capturados em outros povoados pela zona? Quem sabe como reagirão os escravos da arca quando os negociantes tratarem suas vidas como uma mercadoria negociada abertamente sob o céu amarelado pelo smog. O certo é que Mutant possui essa pegada fantástica de garantir que o mundo afete o tempo todo seu personagem, mas é mais certo ainda que nenhum papel será tão afetado pelo mundo ao seu redor como um escravo.

Dito tudo isso, vamos falar de mecânica, de talentos e habilidades. O escravo é aquilo que no RPG chamamos de tanque, ou seja, ele sabe literalmente ignorar a dor, seja ela física ou psicológica. É bom lembrar que a mecânica do jogo permite sofrer perdas em qualquer um de seus atributos, então quando falamos em ignorar dano psicológico em Mutant isso não é um mero jargão. O escravo pode realmente ignorar quaisquer pontos de dano (Força), fadiga (Agilidade), confusão (Astúcia) ou dúvida (Empatia) que sofra simplesmente jogando sua perícia Superar (confesso que não gostei muito dessa tradução, acaba sendo confundido com a perícia Suportar, principalmente entre os novatos, mas são detalhes). Para cada sucesso, um ponto de trauma é automaticamente eliminado e pasmem: pode ser usada quantas vezes for necessária e sem consumir absolutamente nenhuma ação ou manobra, nada, nadinha! Meus camaradas, quiseram realmente dar um bom incentivo para a escolha desse papel tão exigente do ponto de vista do roleplay. A única exceção é o trauma recebido ao forçar as jogadas, desse aí não tem como se livrar, ou seja, nada mais terrível para um mutante do que quando a mutação agita dentro de si e reverbera em seu corpo e em seu espírito, ele poderá ser capaz de feito inimagináveis, mas o preço pode ser caro demais.

Achou tudo isso absurdo? Não terminou ainda, experimente de cara escolher o talento do escravo chamado Rebelde: quando jogar para Superar, para cada sucesso, você ganhará mais um dado em sua próxima ação. É isso mesmo, não importa qual a sua próxima ação, se você vai conversar, se vai amassar a fuça do seu inimigo, se vai tentar correr por aquela viga podre entre dois prédios, não importa, vai poder contar com seus dados extras em sua próxima jogada! Isso é simplesmente absurdo, porque em Mutant você receberá pontos de trauma o tempo inteiro, vai usar seguidamente sua perícia Superar e vai ganhar na mesma medida dados extras. Ou seja, desça a porrada, meu amigo, mas bate para me derrubar, porque se eu ficar de pé, a coisa vai ficar feia para você.

Achando que é muita apelação? Então, eu pegaria logo de cara esse talento, óbvio, mas não esqueceria dos outros dois talentos do escravo, Cínico e Resiliente, que garantem dois dados extras para Superar, respectivamente, traumas de dúvida e dano. Que maravilha olhar a expressão de seu inimigo ao perceber que o bastão com pregos sequer o arranhou e ainda poder sorrir cinicamente antes de virar seu pescoço ao contrário ou simplesmente vê-lo fugir borrando as calças.

Falando dos talentos gerais, não há uma lista muito extensa a ser sugerida para o escravo como nos outros papéis. Na verdade, além daqueles talentos úteis em todas as situações (Cozinheiro da Zona, Estômago de Passarinho, Mão Pesada, etc.) deixo como dica o talento Guarda-Costas. Se você está a fim de ganhar umas balas trabalhando como guarda-costas, quer proteger de verdade a quem serve ou simplesmente é um altruísta, este pode ser um talento muito legal, você pode simplesmente se jogar na frente de alguém para receber um tiro em seu lugar sem gastar ações em conflito (isso mesmo, sem gastar ações). De quebra, ainda poderá jogar sua perícia Superar e receber dados extras com o talento Rebelde para serem usados em sua próxima ação. Eia a alegria dos nossos amiguinhos combeiros.

E, finalmente, chegamos no nosso bom e velho talento “Faz-Tudo”, afinal, com raras exceções, ninguém desejará ser escravo pelo resto de sua vida, mesmo se for ela uma vida miserável. Quando Veda Junta eliminar seu algoz, Vanessa terá que escolher como continuar sua vida ao lado de sua amada, então vamos pensar as opções:

O Adestrador de Cães: Não há absolutamente nada do ponto de vista do roleplay no caminho de um escravo que deseje tornar-se um adestrador, ao contrário, a companhia de um amigo canino pode ser um gancho muito legal para reconstruir uma vida depois da escravidão. Para quem viveu escravizada pelos seus iguais, mais vale a fidelidade e a companhia do seu vira-latas. Em se tratando de mecânica, vai ser necessário compensar o pouco investimento no atributo Agilidade colocando fartos pontinhos em incitar cão, mas isso é a vida, meus amigos, você foi escravo até hoje, não espere ser um excelente adestrador. Outro detalhe bem legal é que a perícia Superar, ao contrário de incitar cão, não consome ação, então se você for acertado enquanto consome sua ação incitando seu cão, pode Superar normalmente e ainda somar seus dados extras para incitar seu vira-latas com mais força na próxima ação se tiver o talento Rebelde.

O Batedor: Assim como o Adestrador de Cães, a Agilidade é o atributo principal do batedor, então espere o mesmo investimento em Encontrar o Caminho para ser razoável em seu novo papel. Do mesmo modo, a habitual solidão dos caminhantes do ermo e a estranheza com que todos o olham é um casamento perfeito com um escravo que jamais confiará nos seus semelhantes depois de uma vida de servidão.

O Brutamonte: Ah, o brutamonte! É sonho perfeito de um escravo. Ambos possuem Força como seu atributo principal, escravo para ficar de pé e o brutamonte para colocar seus inimigos na lona. Como já dito, a perícia Superar não requer ação para ser utilizada e ainda pode gerar dados extras com Rebelde, então espere um brutamonte com um “efeito Hulk”, ou seja, quanto mais você me bater, mais forte e furioso vai me deixar, isso sem alterar muito a ficha do personagem em termo de distribuição dos seus valiosos pontinhos de experiência. Roleplay? Esquece isso meu amigo, seu negócio é quebrar queixos e quanto mais tempo ficar de pé pior para seus inimigos.

O Chefão: O Chefão utiliza Astúcia como seu atributo principal, e assim como nossos amigos cronistas e negociantes com Empatia, não é de se esperar um escravo com elevada Astúcia, mas eu gosto muito de imaginar um escravo que ascenda ao papel de Chefão, pense que para além de ganhar sua liberdade, ganhe ainda o domínio de uma gangue e uma posição social respeitada (ou temida). Se há complicadores do ponto de vista da mecânica, confessemos que é algo bem tentador de imaginar, quem pode não apreciar são aqueles que o humilharam em seus anos de escravidão, dar poder a alguém que sempre foi cativo pode ser algo bem perigoso (e muito divertido). Além de tudo, o escravo cobre uma fraqueza natural do Chefão, sua baixa resistência, principalmente na zona. De fato, um escravo que ascenda a Chefão vai ser um cara duro de derrubar, em todos os aspectos.

O Cronista: Definitivamente, não vejo o escravo como um futuro cronista, nem do ponto de vista da mecânica, já que nenhum escravo vai investir muito em Empatia, e nem do ponto de vista de suas motivações, já que o escravo está centrado em força física e o cronista em sua inteligência. Pode existir? Pode, o divertido de Mutant é que pode tudo, vai que o seu escravo tenha dedicado seus anos de servidão a um cronista e agora o que faz de melhor é não mais servir como escravo, mas ajudar os outros por altruísmo ou mesmo por necessidade, inspirando-os de alguma forma na reconstrução desse mundo destroçado.

O Engenhoqueiro: Eis a opção que talvez seja a mais “meio termo” – não há tantos benefícios ou atrativos para um escravo tornar-se um engenhoqueiro, mas não há também grandes dificuldades. Certamente vai precisar de um bom investimento em Fazer Gambiarra para compensar a baixa Astúcia e um gasto extra com os talentos que irão te fazer um bom engenhoqueiro (vide nosso artigo sobre O Engenhoqueiro), mas se o caminho inverso é mais difícil e seria importante uma boa história que justificasse porque seu engenhoqueiro decidiu submeter-se a uma vida de escravidão, não é difícil pensar o contrário. Pode ser que o seu antigo dono fosse um engenhoqueiro e você aprendeu com ele o ofício de transformar sucatas em coisas úteis, pode ser que simplesmente esse tenha sido o melhor caminho para sua sobrevivência, então talvez o maior desafio aqui seja a criatividade.

O Negociante: Outro papel que, como o cronista, tem Empatia como seu atributo principal e, de novo, a questão aqui não é apenas mecânica, mas é estratégia de sobrevivência, já que você poderia investir na perícia do negociante e dar um jeito razoável a essa questão. O negociante aprendeu a viver usando sua esperteza e sua inteligência, colou nos caras mais fortes e pegou a manha de viver da necessidade dos outros, não é muito a praia de um escravo, mas serei sempre repetitivo em dizer que absolutamente nada supera a criatividade. Vai que seu antigo dono deixou um farto ou valioso espólio e você viu nisso a chance de recomeçar, vai que como escravo de um grande chefão você aprendeu a conhecer os segredos e as intrigas da arca e agora sabe como usar essas poderosas armas à seu favor.

Enfim, era o que precisava dizer, é arriscado ficar por aí falando de liberdade, isso desagrada Chefões e negociantes. Vamos nos encontrar novamente, quem sabe em um novo mundo onde tenhamos invertido essa pirâmide, onde eles estejam sobre nossas botas e nós estejamos no topo. Até lá, tome cuidado com as sombras que correm entre esses latões velhos. Muitos estão aqui apenas para se aquecer, outros para colher nossos sussurros e usar contra nós.

Por Anderson Fontes
Equipe REDE
RPG

Artigos anteriores da série:

O Engenhoqueiro

O Brutamonte

O Chefão

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