Mutant: Ano Zero – Interpretando papéis: O Engenhoqueiro

Tinham saído naquele entardecer à caça de um assassino, alguém estava matando os mutantes da arca. O velho navio encalhado que chamavam de lar nunca tinha sido seguro e agora seria um caos, a menos que alcançassem o responsável pelas mortes, vivo ou não. O que os companheiros não sabiam ou faziam questão de não demonstrar é que não era essa a motivação da engenhoqueira. Veda Junta tinha um sonho, transformar aquela sucata encalhada em uma fortaleza e vê-la navegar sobre as águas escuras daquele lamaçal infinito, para isso era preciso juntar coisas, muitas coisas que peça a peça iam colaborando no quebra-cabeças de seu objetivo.

Quando o brutamontes chutou a porta enferrujada foi a primeira a entrar, já tinha observado a placa pendurada na entrada, rangendo ao vento agourento, não sabia ler ou escrever, mas o desenho no anúncio era muito claro, era aquilo que precisava para começar seu negócio de venda e conserto.

Era um depósito de armas dos antigos. Muitos rifles estavam sobre meio balcão que havia sobrevivido ao tempo, outros estavam pendurados pela parede, não seria fácil transportar tudo aquilo, mas por sorte estava atenta à extensa grade de arame pela qual havia passado minutos antes. Com a ajuda dos companheiros e com a velha corda que havia roubado de um corpo enforcado, foi dobrando e amarrando o cercado de arames até que se tornasse uma mochila improvisada capaz de carregar pelo menos oito pistolas e alguns rifles. Tinha ganho o dia, daria para iniciar seu negócio de reparos. Por um minuto, chegou a esquecer a busca pelo assassino…

Olá, parceiros e parceiras dessa longa jornada pelo ermo! Começando nossa série de dicas sobre os papéis em Mutant: Ano Zero, vamos trocar algumas ideias sobre o engenhoqueiro. Não consigo imaginar um RPG que se preze sem uma opção de personagem, primária ou secundária, voltada para a coleta e construção usando bugigangas, coisas comuns que aos olhos de quase todos seriam simplesmente lixo: inventores, artesãos do caos, curiosos demais para ignorarem o depósito de armas velhas e enferrujadas. Tem que haver algum propósito nessa pilha de lixo e o engenhoqueiro é o cara ou a cara que vai dar sentido ao inútil, e isso pode ser muito divertido.

O que eu posso construir? O livro básico traz algumas opções muito legais de construção, mas é bom observar que se tratam de meras opções. Se há um papel que exija enorme esforço criativo é o engenhoqueiro, é uma opção para quem gosta de queimar os neurônios: a placa que rangia ao vento na entrada do depósito de armas poderia em minutos tornar-se um escudo nas mãos de Veda Junta, os trapos usados pelo corpo enforcado de onde recolheu a corda dariam um ótimo traje de frio, as mesmas grades que tornaram-se um mochila improvisada poderiam, com outros materiais, transformarem-se em balsas ao redor do velho navio em que habitavam. O limite é a imaginação e, é claro, os materiais disponíveis.

Construir coisas cada vez mais complexas vai exigir mergulhar mais fundo nos perigos da zona em busca de materiais valiosos e coisas valiosas demais podem despertar o desejo de amigos e inimigos poderosos. Essa é a velha regra, meus amigos: se você tem, alguém vai desejar, e essa regra é perigosa entre os habitantes da arca. Narradora e jogadores podem e devem tirar muito proveito desses detalhes para irem fundo na experiência de imersão e criarem aventuras cada vez mais divertidas e criativas.

Em termos de especializações possíveis para um engenhoqueiro, há três bem legais a partir dos talentos iniciais do papel:

a) O Inventor: Já que só posso escolher um talento inicial, sem dúvida eu começaria o jogo com inventor. Quando você começa é, como eu costumo dizer, ruim em tudo, e o inventor é o cara! Não subestime os dois dados oferecidos para criar e saia criando tudo na devassidão de sucatas que tornou-se o mundo. Para arriscarem-se na zona no começo do jogo, seu grupo vai precisar de escudos, armas e armaduras improvisadas, de trajes de frio e de trajes anti-podridão, dentre outras traquitanas que vão mantê-los vivos. Lembro de certa vez encontrei algumas balinhas a princípio sem sentido, sem muita utilidade naquele primeiro momento, e não é que daquela mistura com birita saíram alguns goles de “birita nicotinada”?

b) O Remendador: Eu já disse, certa vez por aqui, que a máxima de que “tudo que é sólido se desmancha no ar” é levada ao extremo em Mutant, tudo é provisório, tudo quebra, então o remendador está ali para destravar a arma quebrada, para recolocar no jogo a armadura destruída na última fuga. Embora não veja esse talento como primeira opção, com o tempo consertar será tão importante quanto criar.

c) O Tunador: Eu deixaria sempre esse talento por último e por uma razão muito simples, não acredito que, tão cedo, os mutantes de sua narrativa tenham contato com os veículos da velha era, mas um dia certamente todo bom engenhoqueiro vai eriçar seus pelos ouvindo o ronco do motor. Sempre gosto de pensar o mundo de Mutant com a pegada de Mad Max e o livro tem bastante conteúdo para esse tipo de campanha.

O tunador é o cara que vai transformar aquela velha máquina no terror que ronca pelos ermos. Olhe com carinho para as façanhas que é possível realizar ao reparar um veículo, com Motor Envenenado é possível aumentar o bônus de equipamento, com Espinho e Lâminas dá para aumentar o dano do veículo – isso é Mad Max purinho. Por fim, com Armadura é possível aumentar a resistência de sua máquina.

O tunador é o cara para jogar tudo isso em proporções épicas.

Então, depois de passear um pouco pela perícia e pelos talentos do engenhoqueiro, vamos falar em talentos gerais:

1- Maximizando as gambiarras: Se você é do tipo combeiro, o próximo talento da sua lista é “Insone”: “Você pode recuperar Astúcia perdida por outros métodos além do sono (página 83)”. a) Fazer Gambiarra em um dispositivo (página 60); b) Entrar em um setor inexplorado da Zona; c) Compreender um artefato.”

É isso o que, basicamente, faz um engenhoqueiro: gambiarra. Para fazer gambiarras, mergulhar na zona é inevitável e, quando for explorar os perigos do ermo, sua vida será compreender os objetos da velha era que for encontrando. Que tal fazer isso recuperando sua Astúcia que normalmente seria recuperada apenas com umas boas horas de sono? Na prática, companheiro, você será tão fascinado em construir, consertar e explorar que vai passar boas noites acordado nessas tarefas enquanto seu grupo cochila, mas não se engane: você ainda sofre de insônia e seus efeitos devastadores se extrapolar! Ainda sobre a condição “insone”, é importante observar que todos necessitam de quatro horas diárias de sono e o primeiro efeito ao não cumprir o cochilo exigido é justamente não recuperar sua Astúcia de nenhuma forma, o que na minha mesa inviabiliza o uso do talento “Insone”. Então, sim, você precisa dormir! A vantagem do talento é recuperar Astúcia por outras formas que não seja dormir, mas não lhe dá a vantagem de permanecer acordado sem sofrer os efeitos da insônia! Fiquem ligados!

2- Uma segunda dica é Burro de Carga: você pode carregar duas vezes mais objetos que o normal sem ficar sobrecarregado (pág. 25). Se a Narradora leva a sério a regra de cargas, acreditem que este talento será muito útil em longas excursões pela zona. Mesmo um bom carrinho improvisado uma hora ou outra não vai poder ser empurrado no meio dos destroços, e o brutamontes e o escravo vão cansar de carregar suas tralhas, daí o jeito é o velho “joga no ombro e parte”.

3- Como uma terceira dica, vou apresentar dois talentos para serem escolhidos conforme você planeje seu engenhoqueiro. É preciso lembrar que uma das marcas mais fortes de Mutant é a certeza de que você está morrendo aos poucos e não há possibilidade de recuperar seus atributos perdidos quando adquire novas mutações (ou existe, mas é muito, muito difícil). Então não há desvios, invista a maioria dos seus pontos iniciais em Astúcia, seu atributo principal, é com ele que vai trabalhar suas gambiarras, depois entram em cena esses dois fantásticos talentos:

a) Com “Cabeça fria”, você vai conseguir utilizar sua Astúcia para se mover no lugar de Agilidade, uma sacada de gênio para se mandar quando a coisa ficar feia, mesmo quando estiver dirigindo um veículo (sim, a perícia Mover é utilizada também para ações que envolvam guiar seu veículo em situações de tensão, um estrago nas mãos habilidosas de um tunador).

b) Com “Estoico”, você vai poder utilizar sua Astúcia para suportar no lugar de sua Força, permitindo sobreviver aos suplícios dos dias e noites vagando pela zona ou mesmo quando o frio ou o calor infernal caírem sobre a arca.

Eis aí dois caminhos para investir seus valiosos e finitos pontinhos de atributos em Astúcia sem ser tão penalizado na ausência de Força e Agilidade.

Por fim, uma pergunta que inevitavelmente rola na mesa depois de muito tempo interpretando um personagem é sobre a possibilidade assumir um segundo papel. A regra do jogo é de novo bastante simples, bastando negociar com a Narradora e cumprir o requisito de possuir o mínimo de 3 talentos para então adquirir o talento “Faz Tudo” e ganhar um ponto de perícia em seu novo papel. Essa pode ser uma opção bem legal para mesas com poucos jogadores, já que andar pela zona sem um batedor, por exemplo, pode ser bastante frustrante. Mas primeiro é importante lembrar que não se trata apenas de combos e combinações de números, é legal colocar muita interpretação e história aqui antes de resolver que deve assumir um novo caminho. Enquanto recolhia as armas na loja, Veda Junta foi atraída pelo ganido sofrido do vira-latas e encontrou em um canto, esfomeado e doente, o seu companheiro inseparável em todas as aventuras dali em diante. Veda Junta é uma engenhoqueira, mas a sua relação com “Guloso” é um gancho perfeito para tornar-se no futuro uma adestradora de cães. É legal não ter pressa em construir esse tipo de relação.

Dito isso, não é nem de longe descartável pensar os papeis que combinariam com o seu atual e no caso do engenhoqueiro aí vão algumas dicas:

O Adestrador de Cães: Veda Junta teria muitas dificuldades em assumir um papel que utilizasse como atributo principal “Agilidade”. Ainda que tivesse o talento Cabeça Fria para mover-se utilizando Astúcia, no novo papel teria certa dificuldade em esgueirar, atirar e, principalmente, comandar seu vira-latas. Então vai precisar investir bastante nessas perícias para ter um adestrador eficiente, mas confesso que eu não escolheria outra opção se tivesse que deixar “Guloso” de lado.

O Batedor: Em termos de desenvolvimento de seus atributos, as dificuldades seriam as mesmas de assumir um adestrador de cães, já que o batedor também utiliza Agilidade como atributo principal. Mas na minha opinião, o papel encaixa melhor com o engenhoqueiro. Nada como unir a necessidade de mergulhar na zona em busca de sucata com a habilidade do batedor em fazer isso sem muitos danos colaterais para si próprio e para seu grupo. Acho o batedor uma boa opção de segundo papel para um engenhoqueiro.

O Brutamontes: Não consigo ver muito de um brutamontes em um engenhoqueiro, mas vai que você seja capaz de criar uma grande história com seu grupo e com sua Narradora. Falando de atributos, o brutamontes utiliza a Força, então pense em investir nas perícias Lutar e Impelir que utilizam esse atributo, além da perícia própria de seu papel, é claro, já que suportar você pode resolver com o talento Estoico.

O Chefão: Ah, o chefão! Eis aí uma vocação nata para o engenhoqueiro. Ambos utilizam o mesmo atributo em suas pericias, são como papeis complementares, sem muitas dificuldades nesse sentido. Por outro lado, o que levaria um engenhoqueiro a tornar-se um chefão é um caminho complexo que pode render muitas histórias inesquecíveis. Vale a pena investir.

O Cronista: Em números, atributos e pericias, o cronista, assim como o escravo, está tão distante do engenhoqueiro como o chefão está perto. Dificilmente um engenhoqueiro terá investido seu aprendizado em empatia ou em pericias como Curar, Sentir Emoções e Manipular. Por outro lado, toda boa história vale um grande esforço, quem sabe quantas histórias e quantos conhecimentos seu engenhoqueiro tenha guardado das suas viagens à zona. O engenhoqueiro também pode se relacionar muito bem com o cronista do ponto de vista dos artefatos, unindo conhecimento com a capacidade de construir melhorias para o povo.

O Escravo: Assim como o brutamontes, o escravo utiliza a Força como atributo principal, mas para Superar no lugar de Socar e Intimidar seus adversários. Vai ser preciso estar preparado para gastar aqueles pontinhos extras nas perícias que utilizam Força, já que não poderá contar com seu atributo principal elevado, mas o principal aqui está de novo na construção de suas motivações. Vai ser preciso uma história bem legal para dar sentido ao motivo pelo qual seu engenhoqueiro decidiu submeter-se à uma vida de escravidão, uma decepção ou uma grande perda talvez. Quem sabe a necessidade de proteger alguém próximo o tenham feito aceitar essa condição, pode sair um momento de muita imersão desses conflitos.

O Negociante: Por fim está o nosso amigo negociante que, assim como o cronista, utiliza o atributo Empatia como principal, exigindo um investimento significativo para não se tornar um personagem “mais ou menos”. Por outro lado, nada melhor para um engenhoqueiro do que vender suas invenções tendo todas as habilidades do negociante para isso. É uma opção de papel para investir sem pena se você gosta de boas histórias e um futuro bem legal de imaginar para Veda Junta, depois de organizar sua lojinha de venda e conserto de armas, motivada pelo depósito de armas encontrado na zona.

E para terminar, é sempre bom lembrar que tudo isso são dicas, nada de leis em tábuas de pedra. RPG é um jogo de reunir amigos e contar histórias, algumas que serão lembradas depois de vinte ou trinta anos, a ideia aqui é inspirar e nada mais, coloquem aí seus comentários e dividam suas experiências.

Nos falamos de novo assim que eu colocar essa gerigonça para funcionar…

Por A.F. Silva
Equipe REDE
RPG

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