D&D: Como o Dungeons & Dragons está ajudando as crianças a se abrirem

“Você ainda está precisando de dados?” Minha amiga, Julia, me perguntou “eu tenho um kit que posso dar a você.”

Eu olhei para ela com cuidado porque eu sabia que este é o momento – este é o momento em que eu me tornaria um jogador de Dungeons & Dragons de verdade.

“…Sim?” Eu respondi e ela me passou um punhado de dados vermelhos e pretos. Eu preciso admitir que eram muito bonitos eu me senti imediatamente muito ligado a eles.

É oficial. Os dados foram rolados. Eu estou jogando Dungeons & Dragons.

No entanto, eu não estou sozinho. Dungeons & Dragons (D&D) está de volta. Ou melhor, o role playing game (RPG), assim como muitos outros RPGs de mesa incluindo jogos como Warhammer, que antes eram associados aos mais geeks entre os geeks, estão começando a se tornar mais populares. O fato de alguém gostar que eu esteja começando a jogar D&D é algo inusitado. Meu conhecimento de muitos mundos de fantasia, tanto os famosos (ex. Senhor dos Anéis, The Witcher, etc.) ou qualquer outro, é no máximo superficial, mas eu tenho que admitir que o D&D é… realmente divertido.Graças a seriados como Stranger Things, cada vez mais pessoas como eu estão iniciando nos jogos de mesa e descobrindo os benefícios de passar um tempo com os seus amigos.

Atualmente, o estigma associado ao D&D como um jogo de homens socialmente excluídos e solitários já está ultrapassado. Em 2017, o D&D teve o seu melhor ano em vendas desde que foi adquirido pela Wizards of the Coast em 1997, com 8,6 milhões de norte-americanos explorando masmorras e matando dragões no mesmo ano (com 40% desses jogadores sendo do público feminino). Atualmente, os terapeutas estão notando a popularidade crescente do jogo e de como os RPGs podem ajudar as crianças com problemas de comportamento a melhorarem as suas perícias sociais (N.T.: sem trocadilho).

Então como, exatamente, jogos tipo D&D estão ajudando as crianças (e os adultos) a confrontarem e derrotarem os seus demônios internos?

Terapia de Comportamento Cognitivo e o Role Playing

Para muitos terapeutas, os benefícios do D&D são óbvios por ser, por definição, jogos de interpretação e desenvolvimento de personagem e de resolução de conflitos, que são os pilares da terapia de comportamento cognitivo, “um tratamento psicoterápico de curto prazo e orientado a um objetivo que tem uma metodologia prática de resolução de problemas.” Os objetivos das terapias de comportamento cognitivo são a mudança de padrões pouco saudáveis e inúteis de pensamento ou de comportamento e sua substituição por alternativas mais produtivas e mais saudáveis. A terapia de comportamento cognitivo vem mostrando a sua eficiência em tratar e ajudar as pessoas a lidarem com uma variedade de doenças mentais, incluindo: depressão, vários tipos de ansiedade, fobias, desordens de estresse pós-traumático, desordens de sono, desordens alimentares, desordens compulsivas e obsessivas, desordens de abuso de substâncias, desordens de bipolaridade e esquizofrenia, entre outras.

Mas abordar temas de saúde mental entre as crianças pode ser difícil, especialmente ao lidar com problemas agudos de ansiedade social e autismo. É onde entra o D&D. Com a opção de criação de um mundo fantástico, a dificuldade de falar sobre assuntos delicados pode ser contornada em um ambiente seguro onde as crianças podem fingir serem outras pessoas, se perderem em um mundo de fantasia e explorarem aspectos não reconhecidos de suas personalidades, assim como construírem perícias empáticas e interpessoais. Nestes ambientes terapêuticos, tudo, desde dinâmicas interpessoais, intensidade de conflitos e até mesmo o ritmo da história podem ser controlados para conduzir os jogadores em dinâmicas de cenários sociais mais complexos que podem demonstrar a força de superação das crianças ao sofrimento causado pelos desafios sociais.

“É como comer os legumes sem saber o que está comendo,” explica um pai que usa o Game to Grow, um grupo de RPG de terapia organizacional (antes chamado de Wheelhouse Workshops) localizado em Kirkland, Washington, “É mais como trabalhar o sucesso, desenvolver amizades e se divertir ao mesmo tempo em que se aprende [perícias sociais] de uma maneira que é possível aplicar em outros contextos.

O Bodhana Group, outro grupo de RPG baseado em terapia organizacional na região metropolitana da Pennsylvania, explica que a ideia de criar um sistema de jogo terapêutico tem como objetivo primeiro a diversão e a criação de um ambiente onde a pessoa pode baixar a sua guarda. De acordo com o grupo, há três pilares que precisam ser organizados para tornar uma terapia de comportamento cognitivo efetiva:

• Criar um avatar terapêutico para as crianças interagirem. “Isto permite que o jogador se envolva e confronte um desafio material por trás do escudo formado pelo seu personagem. Eles podem solucionar testes beta, opções e tentarem diferentes abordagens para um mesmo problema.”

• Criar um espaço para testar ações e consequências. “A vantagem é que, dentro do mundo de jogo, os efeitos do mundo real não desencorajam a experimentação. Isto não é muito diferente de um espaço seguro e da confiança entre um conselheiro, um terapeuta ou uma sessão em grupo.”

• Criar uma história completa e um arco para o personagem. “Ambos são criados em parceria entre o jogador e o Mestre de Jogo (MJ) e podem ser criados com certas questões ou complicações em mente. Este é o estágio que pode ser mais recompensador e impactante, entretanto também pode ser o mais desafiador.”

“Eu definitivamente conclui que o D&D pode ser uma ferramenta incrível para retirar as pessoas de suas conchas e incentivar os jogadores a serem criativos de uma forma que normalmente eles não seriam em seu cotidiano.” Explica o meu Mestre de Jogo, Will Hurst (co-criador de outro sistema de RPG, o Dreadlore). Dentro do meu próprio grupo de D&D, Hurst não apenas criou o mundo inteiro para explorarmos, mas também conversou sobre os nossos personagens e seus antecedentes com cada um de nós, e criou um plano de como eles seguiriam pelo mundo criado por ele antes mesmo de o jogo começar.

Porém, o trabalho dele não parou por aí, “o Mestre precisa ser um mediador entre os jogadores.” Explica Hurst, “Então, quando os jogadores estiverem jogando com, ou contra, os outros jogadores, ele precisa garantir que essas interações sejam saudáveis e produtivas. Ele precisa ter certeza que nenhum jogador esteja sofrendo bullying e que todos estejam tendo um crescimento dentro do jogo.”

“No D&D, você precisa ser social. Você precisa tomar decisões.” E Hurst continua, “Ainda assim, você tem impunidade, pois não é você quem está tomando as decisões, é o seu personagem. Portanto, isso dá ao jogador uma margem para explorar aspectos pessoais de si mesmos que não iriam ocorrer de uma outra maneira. Mas o jogo também se baseia em sorte, algo que ensina aos jogadores como lidarem com as probabilidades simples da vida. Não se discute com um dado e é importante que os jogadores entendam isso também.”

Os benefícios desses grupos de jogos terapêuticos muitas vezes são rápidos e têm o benefício adicional de se desenvolver ao longo do tempo.

“Nós notamos uma mudança gradual e definitiva na forma que o nosso filho interage com os outros.” Um outro pai do Game to Grow diz, “Ele ficou mais consciente de como as suas ações afetam os outros, como por exemplo, que focar apenas na vitória de seu personagem nem sempre é a melhor estratégia. Ele parece mais hábil em se envolver nas situações sociais, como a importância de ouvir os demais e a arte de se envolver.”

Da mesma forma, outro pai da Game to Grow reflete: “Meu filho normalmente quieto e introvertido deixa esta oficina sorrindo e animado para compartilhar as aventuras em que ele acabou de embarcar”. Continuando, “Ele [também] vê como ouvir melhor, interagir e ajudar os outros.”

Pelo Amor ao Jogo

Pode parecer que os efeitos terapêuticos desses jogos ocorram nos dois lados da mesa, entre o Mestre de Jogo e os jogadores, “Eu, definitivamente, tenho usado o D&D como uma ferramenta de trabalho para trabalhar as minhas próprias amizades em um nível pessoal.” Diz Hurst.

Algo incrivelmente interessante nas terapias de grupo baseadas em RPG é que este nasce do amor ao jogo da parte dos terapeutas.

Megan A. Connell, Doutora em Psicologia da American Board of Professional Psychology, uma psicóloga e uma barda de nível 13, possui um canal no Youtube chamado G33ks (Geeks) Like Us que explora as vantagens e as desvantagens da terapia de comportamento cognitivo baseada em RPG. Ela também conduz jogos como a “princesa que resgata a si mesma,” um grupo de empoderamento feminino, grupos para perícias sociais, deficiência sensorial e até mesmo um grupo para veteranos (a própria Connell é uma veterana). Além disso, Connell ensina aspirantes a Mestre de Jogo em como montar um grupo, conduzir combates, criar mundos, e criar Personagens Não-Jogadores (os personagens com os quais os jogadores podem interagir no jogo por um período de tempo maior do que apenas uma sessão e são controlados pelo MJ). Connell acredita que quanto mais jogadores de D&D no mundo, mais feliz este será.

Uma jogadora do grupo de Connell para empoderamento feminino explica como a personagem dela a ensinou a manter os seus próprios princípios dizendo “Eu acredito que aqui [no mundo real], a minha personagem não teria dito sim para isto ou aquilo [uma situação a qual eu não me sentisse confortável], então eu decidia fazer o que ela faria, e dizia, ‘não.’” Enquanto outro de seus jogadores, do grupo de perícias sociais, concluiu: “Oh! Isso não é sobre o que eu quero, é sobre fazer o que o meu personagem quer.”

O D&D não é apenas sobre matar dragões ou explorar masmorras. Em ambos os cenários terapêuticos apresentados, ou até mesmo em nenhum ambiente terapêutico, o D&D pode abordar assuntos delicados. “Como Mestre de Jogo, eu uso os meus jogos como uma oportunidade para explorar e confrontar uma variedade de temas como traição, racismo, religião e morte, e eu acredito que é algo bastante recompensador para muitos MJs.” Diz Hurst.

Os potenciais para as aplicações do uso terapêutico do D&D são infinitas e é ativamente explorada pelos pesquisadores. Há atualmente um banco de dados de pesquisas de RPG que coleta e explora o quão longe poderia abranger o seu uso. Seria fascinante ver como o campo pode se expandir e a quem poderia ajudar. Por exemplo, como as terapias de RPG poderiam ser usadas para ajudar alguém com um histórico de abuso de substância a se ajustar a uma comunidade onde o sucesso depende, em parte, de recriar todos os hábitos e estrutura sociais? Como esses jogos estão ajudando veteranos de guerra a se reajustarem à vida civil? Esses jogos poderiam ajudar uma pessoa a superar pelo luto e pela perda de uma pessoa querida?

Por fim, enquanto o nosso mundo exige cada vez mais de cada um de nós, é bom saber que as soluções para algumas das nossas angústias podem ser encontradas em jogos, diversão e em abraçar o nosso geek interior.

Por Clary Estes
Tradução de Eduardo Elfman
da Equipe REDE
RPG

Link para o artigo original: forbes.com/sites/claryestes/2020/03/14/how-dungeons-and-dragons-is-helping-kids-open-up

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