Cordel do Reino do Sol Encantado RPG (resenha)

Não há dúvidas de que as tradições brasileiras podem ser fontes férteis com a capacidade de instigar a imaginação de escritores modernos e, porque não, de autores de jogos e RPGs.

Inspirado na riqueza da literatura e folclore do nordeste brasileiro, o autor Pedro Borges (podcast Legião dos Dados, Crônicas de Avalon e Crônicas RPG) mergulhou nos clássicos Os Sertões (Euclides da Cunha), Grande Sertão: Veredas (Guimarães Rosa) e o Auto da Compadecida (Ariano Suassuna) e produziu este surpreendente RPG chamado Cordel do Reino do Sol Encantado.

Então, dadas as referências literárias, o Cordel é um sistema e cenário de RPG ambientado na região do cangaço no início do século XX, que foi apresentado à comunidade através de um financiamento coletivo que atingiu impressionantes 1.039% da meta pretendida.

Anteriormente, quando disse que o projeto é surpreendente, não me ative apenas ao conceito abordado, mas principalmente pelo cuidado e, porque não dizer inspiração, com que o material foi concebido: em formato A6 e com projeto gráfico diretamente inspirado no estilo de xilogravuras dos cordéis tradicionais. Folhear os volumes traz um prazer completamente diferente de apenas se debruçar sobre um novo jogo.

Sobre a arte diferenciada, que vai receber uma atenção especial no último volume, cada um dos cordéis possui capa produzida pelo Bruno Prosaiko (Birl: Planeta Monstro, Espadas Solares e Feitiços Cósmicos, Tormenta20, +Morra! etc) e ilustrações internas de Felipe Tadashi. Os textos seguem cuidadosamente o formato de repentes com três estrofes de oito versos, chamados oitavas e, como não poderia deixar de ser, muitas vezes herdam dos originais o tom de críticas sociais bem-humoradas.

Ao todo, o trabalho é composto por doze cordéis de 32 páginas cada. O projeto inicial é composto por seis cordéis que apresentam as regras básicas, e a partir do momento que metas adicionais foram atingidas, novos volumes foram sendo incorporados ao conjunto.

E além dos cordéis, foram incluídos nos pacotes sons, mapas e tokens para utilização em VTTs, e um conjuntos de NPCs, heróis ou vilões, criados por apoiadores de recompensas específicas.

O cenário

A ação se desenrolará no Nordeste do Brasil naquele início do século XX, onde se passam as histórias das já citadas referências literárias, e além de apontar cidades conhecidas desde o Ceará até a Bahia. O Rio Grande do Norte recebeu a fictícia Bacurau, palco do premiado filme de mesmo nome lançado em 2019. O palco principal é a faixa do interior desses estados conhecido como mapa do cangaço. De maneira geral, as tensões dos relacionamentos terão papel importante nas tramas das sessões de jogo, tanto pela ótica dos personagens, como das comunidades, conceito que será apresentado adiante.

O sistema

A mecânica do jogo se baseia em rolagens de d6 e no registro do que é chamado de Sucessos em resposta aos testes propostos pelo Narrador, aqui divertidamente batizado de Contadô.

São utilizados seis atributos, que receberam os divertidos nomes de Peleja (Força), Ligeireza (Destreza), Parrudice (Constituição), Esperteza (Sabedoria), Estudo (Inteligência) e Valentia (Carisma), que podem assumir valores de 1 a 6. Cada classe possui três vantagens e uma desvantagem específicas que são descritas nas fichas. A singularização dos personagens se dá através de utilização de um bônus atribuído pelo jogador a determinado atributo escolhido.

A dinâmica do sistema propõe a existência de uma sessão zero que pode consumir 1h da sessão inicial, e partindo do princípio de que o Cordel do Reino do Sol Encantado é um sistema colaborativo, o grupo de jogadores definirá o tipo de comunidade do qual todos farão parte e que provocará a reunião e a motivação dos personagens, podendo ser um Bando, Fazenda, Milícia, Povoado, Procissão e Tropa. Tal qual um personagem, a comunidade possui uma ficha própria onde serão registradas características específicas como Reputação, Recursos, Beligerância, Disciplina etc.

Definida a comunidade, passa-se à escolha de classes de cada um dos personagens que se baseiam nos arquétipos da cultura nordestina. Apesar de o sistema permitir combinações diversas, casos extremos como de um Cangaceiro numa Procissão, ou uma Beata numa Tropa, exigirão do jogador uma boa dose de imaginação para estabelecer as motivações/explicações para justificar tais composições, tudo para o bem da história. As classes são compostas tanto pelos populares combatentes de Cangaceiros, Volantes e Jagunços, como também pelos surpreendentes Bajuladô, Miseravi, Rezadeira, Valentão, Doutô, Padre e Bem-nascida, e já totalizam mais de 30 opções para os jogadores, dentre aquelas propostas no projeto inicial e as que foram incorporadas através de metas estendidas alcançadas.

Em princípio, o estilo do jogo segue a filosofia do “no-prep”, ou seja, com o conteúdo fornecido pelos cordéis, o Contadô pode iniciar uma sessão com nenhuma preparação, ou então simplificá-la bastante. É claro que não há nenhum tipo de impedimento que um Narrador opte por desenvolver suas aventuras sem o auxílio do conteúdo existente.

Essas ferramentas são apresentadas no cordel “Punhado de Tabelas para Aventuras Singelas”. As tabelas disponíveis vão desde auxiliares na criação de PCs e NPCs, como origens no sertão, objetos encontrados, comunidades, suas ameaças e eventos extraordinários, até temas para aventuras. Esse cordel vai fazer o Contadô e jogadores botarem em prática os pilares do movimento OSR: abraçar a aleatoriedade e mergulhar na narrativa emergente!

Sobre os cordéis

O 1º cordel, que leva o nome do sistema, além do resumo do cenário apresenta as regras básicas para o desenrolar do jogo e da criação de personagens.

Nele também é proposta uma definição fundamental para o desenrolar da história, que é a rede de relacionamento dos personagens. A partir de rolagens de dados, serão definidos os graus das relações entre os personagens desse grupo. Esse grau de relacionamento pode variar de 1 a 6, que representarão gradação de sentimentos desde ressentimento até gratidão. Rolados os graus de relacionamento, é hora de propor o porquê desses sentimentos entre os personagens.

Começando no nível 1, os personagens evoluem através do atingimento de marcos (milestones) da história, a critério do Contadô. Como sugestão, o sistema propõe que o personagem evolua de nível quando completar a quantidade de sessões representada por esse próximo nível. Ou seja, duas sessões para alcançar o nível 2, mais três sessões para o nível 3 e assim por diante.

Aqui, o “dano” que os personagens recebem é chamado de Sofrimento. E, no Reino do Sol Encantado, existem vários tipos de Sofrimentos: Angústia, Calor, Cansaço, Enfermidade, Intoxicação, Medo e Sede.

As 14 classes básicas são apresentadas no cordel chamado O Povo do Sertão, através das fichas base de cada uma delas.

O cordel chamado O Grande Elenco Político e um Pouco do Mundo Mítico apresenta oito classes chamadas de “prestijo” e seis monstros, como Lobisomi, Onça e Tinhoso. As classes “prestijo” são criadas especificamente para serem jogadas como NPCs, e representam figuras típicas como a Benzedeira, Bispo, Profeta e Capitão.

Tanto as classes “prestijo” como os monstros, são apresentados em fichas idênticas às das classes de jogadores.

No 4º Cordel chamado Reino do Cangaço Forjado a Bala e Aço, o cenário é aprofundado bem como as comunidades disponíveis.

No cenário são listadas as cidades que fazem parte do “reino”, aquelas que se localizam dentro da área chamada mapa do cangaço e aquelas fora do reino, normalmente mais próximas do litoral. Cada um dos estados recebe atenção, onde são descritos sucintamente histórico de desenvolvimento econômico e político na época em que se passa a ação, além de características geográficas e personagens históricos.

As comunidades são definidas por fichas também semelhantes às dos personagens e, da mesma forma, estão sujeitas a testes. Tal qual um personagem, as comunidades podem desempenhar ações específicas e evoluem de nível.

Para aqueles que curtem um jogo solo de RPG, o cordel Auto e Calvário do Jogador Solitário oferece detalhadamente os caminhos para quem quiser usufruir da experiência de se aventurar “alone” pelo Reino do Sol Encantado. Além do jogo solo, esse cordel também traz informações da organização dos mapas utilizados pelo jogo e regras para movimento.

A partir do 7º cordel, o conteúdo foi disponibilizado em decorrência da superação de metas estendidas do projeto, e nesses seis volumes adicionais são apresentadas novas classes de personagens e dicionário de termos utilizados no sertão.

O projeto como um todo demonstra não só a grande capacidade de criar regras simples do autor Pedro Borges, como do cuidado e carinho com que este mergulhou na pesquisa histórica e na teia cultural que é o nordeste brasileiro.

O Cordel do Reino do Sol Encantado apresenta então um sistema enxuto mas eficiente, num cenário que tem poder para cativar o imaginário de jogadores experientes e novatos que se aventurem pelos recônditos dos jogos de RPG.

A versão impressa está quase pronta e logo será entregue aos participantes do financiamento do projeto. Quem não financiou, pode baixar gratuitamente a edição especial do jogo no link mais abaixo.

“Então meu nobre amigo
Se o Cordel lhe encantô
Corre ligeirinho
Lá no projeto
Que o jogo já começô”

Por Marcelo Augusto
Equipe REDE
RPG

 

Link para baixar gratuitamente a edição especial do jogo: newordereditora.com/loja/rpg/o-cordel-do-reino-do-sol-encantado-edicao-especial

 

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