RPG em Sala de Aula: Vivenciando a História

Um balanço das oficinas realizadas entre 1998 e 2002 pelo professor Marcelo Telles usando RPG aplicado na Educação

Comecei usando RPG no processo educacional em 1998, na mesma época em que surgiram as primeiras iniciativas desse tipo aqui no Brasil. A que inicialmente me chamou atenção para o uso do meu hobby na sala de aula foi a do CEL (Centro Educacional da Lagoa), que usou troca de mensagens entre alunos via computadores para ensinar a Revolução Francesa: cada aluno representava um personagem das diferentes classes sociais da época da França pré-revolucionária, que enviavam cartas uns para os outros.

Por uma dessas coincidências, algum tempo antes dessa iniciativa da CEL, eu havia participado de um jogo PbEM (Play by e-mail – jogo feito por mensagens de correio eletrônico) em moldes semelhantes e no mesmo cenário da Revolução Francesa.

Coincidências à parte, um exemplo do trabalho que eles desenvolveram pode ser conferido no link abaixo, feito por ocasião das comemorações dos 500 anos do Brasil:

http://www.cel-dtec.com.br/500anos/br5001.htm

Devemos também citar como trabalho pioneiro na área, o de Flávio Andrade e Carlos Klimick. Atualmente Carlos Klimick continua desenvolvendo seu trabalho com Eliane Bettocchi no site Histórias Interativas:

http://www.historias.interativas.nom.br

No mesmo ano de 1998 resolvi encarar o desafio de usar RPG em sala de aula. Embora eu seja Professor de Música, optei por aplicá-lo em História por possuir também conteúdo nessa área, pela evidente facilidade em desenvolver uma aventura abordando a História e para desenvolvê-la como atividade interdisciplinar, com a participação e suporte de colegas da área de História. Todas as oficinas que eu fiz foram em escolas da Rede Pública Municipal do Rio de Janeiro, em turmas de 6a e 8a séries. De 1998 a 2000, elas foram feitas na Escola Municipal Barão de Santa Margarida. Em 2002 foi feita na Escola Municipal Laudímia Trotta.

A primeira oficina teve como tema a “guerra de trincheiras” da I Guerra Mundial, feita a partir do filme “No amor e na guerra”, que narra a juventude do escritor Ernest Hemingway, e foi feita em uma turma de 8ª série (faixa etária variando de 14 a 16 anos). Resolvi recriar a cena inicial do filme em sala, numa dinâmica de RPG, com um desenvolvimento diferente do que ocorre no filme. O sistema de jogo usado nessa primeira oficina foi o GURPS. Tal escolha foi motivada principalmente por usar dados comuns de 6 faces e assim tornar a mecânica mais acessível ao entendimento para os alunos que não conheciam o RPG. Procurei usar o GURPS do modo o mais simplificado possível. Como na época todo esse tipo de experiência era absolutamente pioneira, optei por usar esse sistema comercial, para criar uma identificação mais simples para o aluno da atividade com um tipo de jogo vendido em livrarias.

Nas oficinas, eu desempenho o papel de Mestre do Jogo e os colegas de História ficam dando suporte, complementando com alguma informação ou explicação sobre o tema de cada aula-jogo. Mais tarde, com a implementação de novas categorias de participantes com a introdução da FLER (Ferramenta Lúdica de Ensino por Representação) nas oficinas, esse papel passou a ser chamado de “Consultor”. Abordaremos mais adiante isto neste artigo.

Participaram nas primeiras oficinas como jogadores apenas alguns alunos que tinham algum conhecimento do que era RPG. A primeira oficina conseguiu completar em grande parte seu objetivo específico principal: fazer os alunos vivenciarem o que foi a “guerra de trincheiras” da I Guerra Mundial. Mas algumas questões foram identificadas em relação ao uso da dinâmica do RPG em sala de aula:

  • Apenas um pequeno grupo de alunos participou efetivamente da oficina (os 7 alunos que desempenharam a função de jogadores), enquanto o conjunto da turma (mais de 30 alunos) ficou apenas como expectadores. Se uma partida de RPG pode ser envolvente para quem está jogando, ela pode parecer enfadonha para aqueles que apenas estão assistindo. Acredito que uma atividade com RPG, para alcançar mais plenamente seus objetivos, não deva ter agentes passivos no processo.
  • Como os jogadores desta primeira oficina eram muito tímidos e a maioria com pouquíssima experiência de jogo, os que assistiam tinham dificuldade, em alguns momentos, de entender o que acontecia e mesmo de imaginar cena. Era necessária minha intervenção, interrompendo o desenvolvimento da narrativa para explicações adicionais. Ou seja, a atividade não pode ficar calcada na capacidade individual dos jogadores ou no conhecimento destes sobre como se joga RPG.
  • Existe uma diferença relevante em se mestrar apenas para um grupo de jogadores e em se mestrar com uma pequena platéia assistindo. Ao desempenhar a função de mestre do jogo, deve-se estar atento para interromper no momento certo para dar alguma explicação para manter a atenção da platéia, mas sem perder o bom andamento do jogo. O ideal seria não haver pessoas passivas, incorporar todos à dinâmica, mas o formato de jogo de mesa tem seus limites. Refletindo sobre essa questão, posteriormente busquei soluções para ela.

Nos dois anos seguintes, 1999 e 2000, as oficinas foram novamente realizadas (uma em cada ano), mas desta vez com alunos de 6ª série. O motivo dessa mudança se deve ao lançamento do que foi fundamental para o desenvolvimento deste trabalho: a linha mini-GURPS.

Simplificando ao mínimo necessário o sistema GURPS, os livros da linha mini-GURPS são pequeno módulos temáticos que dão suporte para se aplicar o RPG no ensino de História. Os três primeiros lançados foram “O Descobrimento do Brasil”, “O Quilombo dos Palmares” e o “Entradas e Bandeiras”. Como sua temática é voltada para o conteúdo normalmente dado na 6ª série, a partir de então, as oficinas foram feitas em turmas de 6ª. Usamos o módulo “O Descobrimento do Brasil” da série mini-GURPS nessas duas oficinas e na terceira, realizada em 2002.

Devido, provavelmente à faixa etária – e ao efeito maior que uma atividade de caráter lúdico exerce sobre eles – a atividade com as turmas de 6a série melhor desenvolvidas, havendo um maior envolvimento dos participantes e mesmo da platéia. Nas duas oficinas, alguns alunos que estavam apenas assistindo, acabaram empolgados pelo jogo e, espontaneamente, sentaram-se à mesa e assumiram os papéis dos personagens coadjuvantes (soldados que acompanhavam os personagens dos jogadores na aventura).

Também devemos frisar que não só o professor/mestre do jogo fez com cada vez mais desenvoltura a atividade em cada uma das duas oficinas, como os jogadores das duas também eram cada vez mais conhecedores do RPG. O que reforça a questão anteriormente levantada: a qualidade da atividade não deve ficar vinculada à experiência de mestre e jogadores com o RPG. É preciso desenvolver uma técnica que permita que qualquer professor, com o mínimo de noção, possa executar uma dinâmica usando o RPG.

Por questões de remoção de escola – mudei minhas matrículas para duas escolas mais perto de onde eu resido, quando finalmente me foi possível essa remoção – houve um pequeno hiato e não fiz a atividade no ano de 2001, sendo retomada em 2002, na Escola Municipal Laudímia Trotta, com o suporte da professora de História, Rebeca Dayan. Nesse ínterim muita coisa aconteceu…

Várias outras iniciativas usando o RPG na Educação foram se tornando conhecidas. E também o estudo e uso do RPG por outras áreas de conhecimento humano. Listas de discussão na Internet surgiram, das quais destaco a lista “RPG em Debate”:

http://groups.yahoo.com/group/rpg_em_debate

E tudo acabou culminando no Simposio RPG & Educação, promovido pela Devir e pela Ludus Culturalis:

http://www.simposiorpg.com.br

http://www.devir.com.br

http://www.rpgeducacao.com.br

O que inicialmente para mim foi apenas uma forma de divulgar o RPG e demonstrar sua riqueza inclusive como ferramenta educativa, havia se tornado um novo campo de estudo, o que mudou o caráter de minhas oficinas e me levou a ter uma perspectiva mais profunda com elas, do que a mera divulgação do RPG entre meus alunos e colegas de magistério.

Dentre as muitas iniciativas que surgiram, está a FLER – Ferramenta Lúdica de Ensino por Representação, criada por Alessandro Reis, uma primeira tentativa de se fazer uma técnica de aplicação do RPG em sala de aula. O FLER pode ser baixado no site do seu criador:

http://www.cfh.ufsc.br/~alevr

A grande inovação da FLER – e que eu incorporei na minha oficina – foram as novas categorias de participantes, além de mestre e jogadores. Algumas dessas novas categorias foram usadas na última oficina realizada agora em 2002. Usei a categoria de “Consultor” (assumida pela minha colega de História, Rebeca Dayan) e a de Auxiliares, que são os participantes que ajudam os jogadores a interpretarem os seus personagens, um auxiliar para cada jogador. O papel de Auxiliares foi exercido por alunos que já conheciam o RPG e os de Jogadores foram exercidos apenas por iniciantes, por alunos que nunca haviam jogado RPG antes. Os resultados foram excelentes, extrapolando positivamente todas as minhas expectativas, inclusive até elevando a auto-estima da turma que participou (eles se sentiam à margem das atividades mais interessantes que eram realizadas na escola).

Nossa oficina foi filmada pelo “Nós da Escola” um dos programas de televisão da Multirio empresa que faz a capacitação dos professores da Rede Pública Municipal do Rio de Janeiro através das várias mídias. Infelizmente, por problemas técnicos da filmagem (erro da equipe de filmagem) a reportagem acabou não sendo veiculada. Abaixo o link para a Multirio:

http://www.multirio.rj.gov.br

Mas isso serviu de lição para mim, pois até então não havia registrado nenhuma das oficinas e pretendo remediar essa questão a partir da próxima, a ser realizada no ano que vem. Inclusive porque meu trabalho foi também citado na reportagem sobre RPG e Educação da revista on-line do site Educarede e eles haviam me pedido algumas fotos, as quais não possuía. O motivo foi porque tudo isso começou de modo despretensioso e cresceu mais do que eu podia sequer sonhar… Conheçam a Educarede e aproveitem para visitar o seu fórum, que possui uma área específica sobre RPG e Educação:

http://www.educarede.org.br

Ou seja, meu trabalho acabou tomando um vulto muito maior do que eu imaginava e a partir de agora terei que fazê-lo cada vez com mais qualidade e, pelo menos, com fotos! Contudo, embora eu tenha conseguido integrar ativamente na atividade 18 alunos usando as novas categorias de participantes da FLER, ainda havia um contingente da turma que ficou como “platéia”, apenas espectadores. Embora a maioria tenha gostado e se divertido (e aprendido sobre o Descobrimento do Brasil de uma forma diferente), muitos agora me cobram também jogar, o que mais uma vez levanta a questão de “como incorporar toda uma turma (normalmente mais de 30 alunos) numa dinâmica de RPG”?

É necessária uma dinâmica capaz de possibilitar a incorporação de todo o conjunto de uma turma na atividade, de maneira ativa. O FLER, apesar de importante por introduzir novas categorias de participantes, não resolve essa questão. Duas soluções são usadas por vários colegas e pesquisadores.

A primeira e mais óbvia é a participação de mais de um mestre de jogo, tendo assim várias mesas de jogo em uma mesma turma, podendo ser as aventuras em cada mesa interligadas, em paralelo ou simplesmente a mesma aventura jogada por grupos diferentes. Em uma dinâmica assim, o ideal é que as aventuras sejam interligadas e que haja um aluno-monitor fazendo a função de mestre de jogo para cada grupo, que deve ter por volta de cinco a sete jogadores cada, ficando o professor como mestre do jogo geral, responsável por interligar as aventuras e concluir a narrativa conjunta.

A segunda é o uso de uma modalidade de jogo derivada do RPG, chamada Live Action. No Live Action, ao invés de um jogo de mesa, a ação é teatralizada, como num improviso teatral. Para um melhor entendimento de como funciona um Live Action, sugiro a leitura do texto de Adriana Almeida na Rede RPG:

https://www.rederpg.com.br/wp/category/live-action/
(Esse texto está temporariamente indisponível, mas será colocado de volta ao ar em breve)

Destaco o trabalho da equipe da Jogo de Aprender, como os educadores que melhor têm desenvolvido atividades nessas duas soluções, tanto com mais de um mestre de jogo em sala de aula, quanto usando a modalidade de Live-Action. Além disso, eles fazem um excelente trabalho de capacitação de alunos-monitores e de professores. Confiram no site deles:

http://www.jogodeaprender.com.br

Um outro trabalho de muita qualidade utilizando Live Action é o do professor Onofre Saback, que pode ser conferido neste artigo feito para a Rede RPG:

RPG e Educação – Botando a mão na massa!

Mas essas soluções, embora tenham que ser aplaudidas, elas funcionam como “projetos” ou “oficinas”, como atividades que pressupõe uma determinada culminância ou sendo uma atividade “extra”, embora dentro do espaço da sala de aula. O grande desafio ainda persiste: fazer do RPG uma ferramenta “mundana”, que permita o uso pelo educador nos seu cotidiano, dentro de sua sala de aula. E a questão central a ser resolvida para isso é a incorporação do conjunto da turma na dinâmica usando o RPG na aula.

Acredito que um dos caminhos para se resolver essa questão seja a implementação de novas categorias de participantes, além daquelas introduzidas pela FLER, criada por Alessandro Reis.
O RPG aplicado na Educação é um campo fértil e inexplorado, e ainda estamos apenas semeando as sementes.

Marcelo Telles
Professor de Música da Rede Municipal do Rio de Janeiro
Publicado anteriormente no site da Jogo de Aprender
Equipe REDE RPG
***
Share This Post

Leave a Reply