Fate: O que o seu personagem sabe fazer?

Se não estivermos jogando um jogo com raças e classes, a primeira coisa que pensamos sobre um personagem costuma ser seu Conceito. Isto é, uma frase curta que resume quem ele é. O próximo passo costuma ser definir o que esse personagem é capaz de fazer e aí entra a ideia de perícias ou habilidades. A maioria dos sistemas resolve isso com uma lista de aptidões comuns que costumam ser usadas: Lutar, Atirar, Comunicação, Investigação e por aí vai.

Comumente temos que adequar as coisas que nosso personagem faz à lista prevista do jogo, o que muitas vezes é bastante suficiente. Alguns sistemas, porém, vão além disso e expandem as capacidades para além de uma simples lista com valores. É aí que chegamos no que podemos chamar de fichas descritivas.

Em FATE, a primeira coisa que define o personagem são os Aspectos. Aspectos são pequenas verdades narrativas acerca do que quer que seja. No caso de Aspectos de Personagens, eles traduzem a essência do mesmo em algumas frases. Usualmente, cada personagem tem um Conceito, uma Dificuldade e três outros Aspectos que podem ser livres ou direcionados, dependendo do cenário. E o que isso tem a ver com o que personagem sabe fazer? Tudo!

Se o Conceito do nosso personagem é Famoso Enxadrista Derrotado, nós podemos imaginar não só que ele é capaz de fazer projeções mentais sobre modelos probabilísticos, como também podemos inferir que ele é capaz de ler situações sociais, como se as pessoas fossem peças de xadrez. Porém, o uso de descrições para transmitir as capacidades dos personagens pode ir além da simples inferência (ou da maleabilidade da descrição). No livro FATE Ferramentas do Sistema, que traz uma série de opções para modificar o sistema básico, existe a possibilidade de usar Aspectos como Perícias. Nesse caso, talvez nosso colega fosse um Famoso Enxadrista Derrotado (+3). Isso amarra de certa forma um nível de proficiência naquele domínio de aptidões. Um dos Mundos de Aventuras que já foram lançados em português aqui no Brasil, o Boa Vizinhança utiliza essa ferramenta para criação dos Personagens do Narrador.

Mas por que usar descrições invés de listas pré-definidas? Porque as descrições falam mais sobre quem é seu personagem! Alguns outros sistemas mais ‘tradicionais’ já haviam notado isso com a adição de Especializações às Habilidades. Então, no Mundo das Trevas (ou no seu primo Crônica das Trevas), dois personagens podem ter Política 2, um, contudo, tem a Especialização Favores Sujos e o outro, Burocracia. Só com essas duas pequenas descrições podemos vislumbrar personalidades completamente diferentes, coisa que seria impossível apenas com a informação Política 2. Em FATE, mesmo que não usemos Aspectos como Perícias, a descrição já traz algumas capacidades dos personagens, bem como tem efeitos mecânicos relevantes. Talvez o lacaio que esteja impedindo o avanço tenha Lutar (+2), exatamente o mesmo nível do nosso Mestre da Capoeira d’Angola, porém, por ter esse Aspecto em sua ficha, o jogador poderá invocá-lo e adicionar +2 em uma jogada, possivelmente o bastante para derrubar seu adversário.

Nem só FATE se utiliza de fichas descritivas, alguns outros sistemas, influenciados, por ele, seguem a mesma ideia. O Sistema L’Aventure, do game designer brasileiro Jorge Valpaços, que move tanto o Arquivos Paranormais quanto o Déloyal, se utiliza de Minúcias. As Minúcias também são breves descrições que estão atreladas ou à história do personagem ou às suas Perícias. Todos os personagens têm algum dado para jogar quando usam a Perícia Interagir, mas aquele que tiver como Minúcia Boa Praça conseguirá, em determinados casos, agir Sob Boa Fortuna, jogando então dois dados e ficando com o maior resultado entre eles.

Outro sistema que logo deve figurar em português e que já foi anunciado é o Hitos, da Nosolorol, que será lançado aqui pela RedBox com o Cultos Inomináveis. Também herdeiro espiritual do FATE, nele os Aspectos praticamente tomam toda a ficha de personagem, tornando-a praticamente toda descritiva. No sistema Hitos, os Aspectos compõem o Conceito, as Características, as Habilidades, os Fatos (tradução livre de Hitos) e até mesmo uma Citação do Personagem. Poderíamos dizer que 90% da ficha de Hitos é descritiva. As Habilidades em si não possuem sequer nome, e sim um ícone relacionado a ela, pois elas são nomeadas pelo Aspecto escolhido para tal. Por exemplo, há uma Habilidade relacionada à Percepção e ela será nomeada de acordo com a descrição dada a ela. Então, um personagem pode ter Ler Rostos 5 e outro Sempre Alerta 3. Notem que isso esclarece mais sobre quem é o personagem e o que ele sabe fazer do que simplesmente Percepção 3 ou 5. Semelhante aos outros sistemas que já citamos, quando o Aspecto cabe dentro da situação, há uma melhoria mecânica da jogada, pois o personagem está agindo dentro daquilo em que é capacitado.

Voltando ao FATE, mesmo mantendo as Perícias do FATE Básico, os Aspectos mantêm a ideia de ficha descritiva. Caso se procure aprofundar ainda mais nisso, pode-se optar tanto por usar Perícias Livres – e aí usar Aspectos como Perícias, conforme já explicamos acima – quanto abdicar completamente de Perícias e usar apenas Aspectos. Nesse caso, o funcionamento dos Aspectos mudam: sempre que um Aspecto for relevante para uma ação, ele adiciona +1. Então se o nosso Famoso Enxadrista Derrotado é também Habitué de Bares Decadentes, ele teria +2 quando tentasse falar com o dono de um bar apelando para sua celebridade. Qualquer um desses Aspectos ainda podem ser invocados ou forçados, como de praxe.

Quanto mais descritiva uma ficha é, mais claramente ela traduz o personagem e, naturalmente, mais único cada personagem se torna. À primeira vista, isso pode ser demasiado ‘solto’ ou caótico e, para jogadores que estão acostumados com preencher bolinhas ou proficiências, pode ser paralisante tanta liberdade de escolha. De fato, há uma mudança na forma de estabelecimento dos personagens: com muito menos é possível aprofundar muito mais. Uma forma didática de gerar os Aspectos de um personagem é usar o ‘Algoritmo’ do já citado Valpaços: escreva a história do personagem em 6 ou 7 frases; destas, marque 5 que sejam mais relevantes; a que melhor descreve o personagem é o Conceito; a que mostra um defeito dele é a Dificuldade; as outras 3 são os demais Aspectos. Obviamente, essa mecânica se adapta perfeitamente ao FATE, mas pode ser usada em qualquer sistema.

Que tal implementar descrições em suas fichas?

Por Yuri Bravos
Equipe REDE
RPG

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