Chamado de Cthulhu: Arquétipos Literários em Chamado de Cthulhu

Fala, meus caros rpgistas! Hoje vou falar sobre três arquétipos literários bem comuns em narrativas. Como RPG é uma narrativa, eles são bons para se pensar em como interpretar seu personagem ou para você, Guardião, saber lidar com os personagens dos jogadores ao ver certos padrões.

Vamos lá!

O protagonista, ou seja, os personagens dos jogadores podem assumir certos arquétipos. O que é arquétipo? São modelos, formas comuns e padrões que certas situações, personagens, tramas e símbolos tomam quando pensamos numa narrativa.

Sim, o termo arquétipo está relacionado com Carl Gustav Jung, da psicologia e psiquiatria, mas os que trarei são os arquétipos literários, e só uma parte deles, estes analisados por Eleazar Mosséievich Meletinski (teórico russo que estudou sobre folclore, literatura, filologia, história e teoria da narrativa).

O RPG é uma narrativa que bebe muito da literatura e acabou herdando seus arquétipos literários que são uma mão na roda na hora de pensar em personagens principais e como eles agem.

Os arquétipos são o que moldam as tendências em D&D e as ideologias e certos antecedentes em Chamado de Cthulhu.

Chega de enrolação, vamos logo com os arquétipos que um protagonista pode assumir. O primeiro é o arquétipo do herói, mais conhecido e o mais expansivo. Por que expansivo? Ele possui muitos tipos de heróis e podem existir quantos nós quisermos, pois foi o primeiro a surgir, por exemplo:

1. Herói Cultural: Resgata coisas importantes e mágicas para o bem da sociedade que o cerca como o Velocino de Ouro ou a espada mágica de Excalibur.
2. Herói Provedor: Busca coisas básicas da vida como água, grãos, comida, magias que invocam a chuva, regeneram o solo morto, ou seja, ele provém para a sua sociedade, casa, família ou grupo para que eles não morram.
3. Herói Criador: Sai em busca de materiais que serão o início de uma grande arma, do castelo mágico, da ferrovia que vai enriquecer a cidade; este herói cria coisas necessárias e úteis à sociedade que se tornam às vezes lendárias ou fundadoras de cidades e países.
4. Herói Deus: Geralmente um semideus e que faz grandes feitos que, às vezes, o fazem se tornar uma divindade ou muito tempo depois as pessoas o consideram um deus diante dos desafios que ele superou.
5. Herói Profeta: É aquele que representa a vontade divina, vence as dificuldades por meio da fé e sua maior arma é o deus que ele representa.
6. Herói Revolucionário: É o que se opõe ao governo autoritário e tem o objetivo de derrubar o poder vigente.
7. Herói Explorador: Sabe aquela terra distante que todos têm medo de ir? Esse é o herói que vai desbravar o desconhecido e voltar com histórias fantásticas.
8. Herói Trágico: Mesmo fazendo o bem e tendo as melhores intenções é sempre bombardeado com as piores coisas como perder familiares, amigos, riquezas e terras, mas que continua fazendo o certo.
9. Herói Cômico: É o herói do dia a dia, aquele que busca o leite, arruma a cama e é louvado como o maior herói de todos, aqui é o corriqueiro da vida elevado a grandeza de um Senhor dos Anéis, por exemplo.
10. Herói Louco: É o herói que faz o “bem” em um mundo, no qual essas virtudes heroicas são vistas como um problema e não solução. Por isso, ele é louco de tentar salvar algo que já não tem salvação e a sociedade ao redor dele trata-o mal e vive expulsando-o dos lugares, ele é um excluído.

O herói é o arquétipo mais comum e pode tomar diversas formas e o que o torna um herói é ele fazer ações que beneficiem algo ao seu redor, mesmo que seja mau negócio para si próprio. Em RPGs de fantasia medieval é bem claro que os personagens são heróis, mas Chamado de Cthulhu também é uma narrativa de heróis, muitas vezes trágicos ou loucos.

Mesmo que o mundo já esteja condenado, porque os deuses do Mythos irão eventualmente acordar e o apocalipse vai acontecer, os investigadores continuam a jornada para, se pá, adiar o inevitável mais um pouco. Os personagens lovecraftianos são, em sua maioria, arquétipos de heróis.

O que faz um herói não é algo mágico, mas a coragem e ousadia, o que faz um protagonista um herói é ele superar desafios impossíveis para a maioria dos humanos, nesse caso os PNJs.

Os heróis não são imortais, eles podem sim morrer, porque o herói é essencialmente humano, mas caso seu investigador fique louco ou morra, outros heróis virão inspirados pelo que partiu ou o sacrifício dele é em prol do bem maior.

Geralmente, quando o herói entra em combate e disputa contra os deuses e a ordem “natural” do mundo, ele possui um fim trágico. Esse geralmente é o caso dos investigadores lovecraftianos, porque eles vão contra os deuses do Mythos e ir contra a ordem natural do mundo acarreta em consequências severas.

Outro detalhe que caracteriza bem o herói é que ele passa por uma jornada de empecilhos e desafios colocados por outrem: pai, tio, futuro sogro, rei, prefeito, delegado, deuses, etc. A questão para mobilizar o herói é que ele tem uma motivação e algo coloca dificuldades no caminho dele para tentar impedir o herói de alcançar seu prêmio.

Você, jogador, pode facilitar muito o jogo ao tomar certa postura durante a criação de seu personagem e na interpretação dele, pois se ele é um herói o que falta é saber de que maneira o mundo a sua volta vai classificá-lo, por exemplo: um policial honesto em meio a gangsteres e um batalhão corrupto é um louco, pois todas as suas ações serão contestadas e dificultadas por todos a volta dele; mas, independentemente disso, ele continua na jornada, pois ele é um herói. O arquétipo do herói vai determinar a sua postura com os PNJs, desafios e os personagens dos outros jogadores. Ser herói não quer dizer que você não ganha recompensa, porém a recompensa não é seu objetivo final, você segue na jornada pela aventura, companheirismo, pela fé e por que é o certo.

Guardião, se você perceber que um jogador ou o grupo agem como heróis, faça PNJs e situações que entrem em conflito com eles, pois a narrativa precisa de conflito; os conflitos são mais fáceis de gerar engajamento pelo jogador, pois alguns conflitos vão despertar o famoso sentimento de “agora é pessoal!”. O conflito pode ser físico como em um combate ou algo moral como em diferenças de opiniões, se você der sorte e o grupo for de diferentes arquétipos, crie situações em que os personagens entrem em conflito (muahahahaha!), por exemplo: há um policial e um andarilho e permita situações em que roubar ou infringir a lei seja possível e permita que um engane o outro ou uma pequena pancadaria que não retire mais que um ou dois pontos de Constituição, faça os personagens ficarem de mal um do outro (os personagens e não os jogadores, RPG é para se divertir).

Prosseguindo para o segundo arquétipo de protagonista temos o anti-herói. A grande diferença entre herói e o anti-herói são os meios que cada um utiliza para atingir um fim ou a motivação para resolver o problema da narrativa, por exemplo: um anti-herói pode causar prejuízos a terceiros, furtar, matar sem motivos e até considerar torturar alguém para conseguir o que quer; e, muitas vezes, só aceita resolver alguma coisa e seguir a jornada de desafios e inúmeros perigos em troca de bens específicos como poder, fama, dinheiro, terra, títulos de nobreza, prazeres sexuais, etc.

Assim como o herói, o anti-herói pode se ramificar em diferentes casos, mas geralmente ele é um irmão do herói, alguém parecido, mas levemente diferente e que possui motivações para ser do jeito que é.

O herói e o anti-herói podem ter divergências e conflitos morais entre eles, mas com concessões eles trabalham juntos com tranquilidade.

Jogador, você quer ser o anti-herói da aventura? Aconselho a pensar em duas coisas: primeiro, você pode agir de forma que a sociedade do jogo condene, ou seja, fazê-las geralmente pode levar você a sofrer consequências, então, seja discreto, pois seu personagem não é um modelo a ser seguido e muitas vezes pode ser perseguido por suas ações. Segundo, você não segue a aventura por motivos abstratos como justiça, patriotismo, educação e aventura, mas por bens físicos e concretos como dinheiro, carros e cargos com poder e influência.

Guardião, há anti-heróis na sua mesa e você tem medo que eles acabem sendo um bando de “bárbaros selvagens” destruidores de tudo que você coloca na frente deles? Coloque autoridades que seguem a moral do herói para entrar em conflito com o anti-herói, por exemplo: o delegado é alguém muito íntegro e só paga a recompensa se pegarem o assassino em série vivo, que é um cultista de Yog-Sothoth; o comerciante e os moradores de uma rua denunciam para a polícia a invasão no antiquário que os investigadores estão roubando uma adaga ritualística de nativos polinésios, etc. Seja criativo e dificulte as ações mais violentas e perigosas com PNJs moralmente inflexíveis, pois isso vai exigir que os jogadores sejam mais criativos para obterem o que querem e a confiarem no rolar dos dados (hehehehe!).

O terceiro e último arquétipo é o Pícaro, trickster, esperto e malandro (o nome tende a variar mesmo). Aqui temos uma linha tênue e complicada, pois o Pícaro é meio brincalhão e está na jornada só para se divertir e segue na aventura, mesmo sem motivação, mas ele pode ser diabólico e caótico também e, em decorrência de suas ações, o circo pode, literalmente, pegar fogo. O melhor exemplo famoso nas séries de um protagonista trickster é o Loki da Marvel.

O Pícaro consegue resultados às custas dos outros, por meio de esquemas e sem mover um dedo, pois tudo que ele faz é na lábia e na esperteza. Raras vezes entra em combate físico, pois sua maior força é a malandragem e o famoso papinho furado que vive colando e ninguém sabe como.

De todos os arquétipos, o Pícaro é um protagonista mais palhaço e fanfarrão e que deixa as responsabilidades mais de lado, pois o importante é a brincadeira ou ser mais esperto que os outros; o que pode render formas muito criativas de solucionar problemas.

Geralmente, o protagonista trickster é polimorfo (troca de forma ou aparência) ou bom em disfarces, ou seja, são excelentes enganadores e criadores do caos, por exemplo: se Nyarlathotep fosse um personagem jogável, ele entraria no arquétipo do Pícaro, pois ele tem várias faces e muitas vezes seus esquemas levam a consequências extremamente perigosas e danosas aos outros.

Às vezes, o protagonista picaresco é só uma pessoa comum e que por acaso tem uma esperteza natural e nem quer enganar ninguém, mas supera as dificuldades por meio da engenhosidade e não pela força, por exemplo: o Aladdin da Disney e ladrões, num geral, da literatura, filmes e séries tendem a ser mais picarescos do que anti-heróis. Ah é! O personagem picaresco sempre é sedutor e manipulador, tendendo a ter certa influência sobre homens, mulheres e autoridades.

O herói e o trickster sempre entram em conflito, pois o Pícaro nem sempre tem a vontade de chegar ao fim da jornada e salvar a todos, podendo até mesmo trair aqueles que pertencem ao seu grupo, o egoísmo do trickster prevalece sobre o bem da maioria, mesmo quando feito por um preço como no caso do anti-herói. É nesse fato que mora o conflito irreconciliável com o herói, pois o anti-herói pelo menos vai até o fim por dinheiro ou outro bem físico e palpável, mas o Pícaro não faz o que faz por um motivo e pode fazer ações condenáveis simplesmente por querer fazer, gerando muitos atritos com o herói e desconfiança por parte do anti-herói.

Estou sentindo esse sorriso aí hein, jogador?! É sempre mais divertido criar personagens mais picarescos e adoradores do caos, mas lembre-se que não é só pela zoeira: o Pícaro precisa ser esperto também e estar um passo a frente de todos e, em geral, ele mais foge do que entra em brigas. Outra coisa engraçada, bom, não sei se é, mas que já usei: na hora que você ver que a vaca está indo para o brejo e não tem como resolver mais, corra e abandone a todos, para o Pícaro, sobreviver é mais importante do que ser chamado de covarde; isso pode render um ressentimento? Pode, mas você interpreta um personagem picaresco que é hipócrita e que venderia a própria mãe para se safar dos problemas (hahaha!).

Meu caro Guardião, os jogadores que agem como Pícaro são um desafio em qualquer mesa e o melhor que você faz é ter personagens que sejam mais próximos do arquétipo do herói, pois eles serão freio e opostos do Pícaro e não tenha medo de dar uma consequência drástica, como todos serem procurados pelas autoridades, a todo o grupo, porque assim o grupo passa a policiar o Pícaro e tomar conta dele e é interessante ver esse cabo de guerra entre o personagem picaresco tentando fazer bagunça e os jogadores desesperados com a consequência. É claro que esse arquétipo não é só problema para a mesa, crie situações que exijam carisma e esperteza para que o personagem trickster se sobressaia, porque ele não é bom no combate, mas é perfeito para resolver problemas sem ter que começar um combate.

Último ponto a ser lembrado, esses arquétipos podem tomar duas posturas durante a aventura:

a) Ativa: tipo mais comum, esse é o que toma iniciativa e tenta movimentar a história por suas próprias ações.
b) Passiva: tipo menos comum, esse é o caso de que o mundo e os deuses “conspiram” para que a jornada continue e ocorra.

Guardião, você precisa ficar de olho nisso, porque jogadores mais experientes tendem a ser mais ativos e você mais reage a eles do que faz alguma coisa. Isso pode facilitar a sessão ou fugir de tudo que você planejou, ou seja, esteja preparado para improvisar sempre que possível ou peça aos seus amigos para retornarem a aventura planejada. Em geral, os jogadores novatos são mais passivos, por isso, vale investir em encontros e combates aleatórios que vão levando a aventura e campanha para a frente; isso permite que a trama não fuja muito dos trilhos e é bem mais fácil de utilizar uma aventura pronta com jogadores mais passivos do que ativos.

Claro que há muito mais nessa teoria de arquétipos literários de Meletinski; mas resumirei bastante e sem aprofundar em cada elemento: para que esses arquétipos (herói, anti-herói, Pícaro) funcionem bem, é necessário que haja durante a jornada deles opositores, sejam eles diretos (os capangas do vilão) ou aleatórios (PNJs normais do mundo que estão abertos ao diálogo e a negociação – aqui o Pícaro caí como uma luva para resolver – e só entram em combate com os protagonistas se necessário ou se forem muito contrariados). E, claro, toda narrativa precisa de um ou vários antagonistas (vilão).

Há outras figuras arquetípicas que são auxiliares, por exemplo, o ajudante e o auxiliar (PNJ coadjuvante ou empregador dos investigadores). São personagens secundários e estão lá para auxiliar o protagonista, negociar com eles, pedir que resolvam desafios e recompensá-los se bem-sucedidos, mas não entram em combates, uma vez que, eles fogem, gritam por ajuda e alguém vem em auxílio deles, são protegidos por magia ou os ataques do herói não funcionam e ele não revida; se ele revidar, é por que se trata de um opositor e não um auxiliar.

Atenciosamente,
Marcus Óliver

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