Física & Magia (VI)

REDERPG SCHOOL OF MAGIC 2: Como Matar um Sultão Sem Sair do Lugar

Saber operar com lentes de ar pode tornar uma aventura muito divertida, principalmente se você souber extrapolar um pouco: no último artigo, vimos apenas umas poucas utilidades possíveis, mas basta uma rápida leitura em algum livro de física (ou alguns minutos brincando com uma lupa em casa) para se pensar em mais e mais usos para as magias de ar: imaginem o que poderia ter acontecido se a cidade de Tróia tivesse meia dúzia de magos de nível mediano, instruídos na Rederpg School of Magic? Bem, quem precisa de artilharia naval moderna, quando é possível incendiar os navios gregos antes de aportarem na praia, apenas moldando lentes de ar e manipulando o foco sobre eles, deixando que a luz do sol complete o serviço?

Pois é, não seria muito diferente de queimar uma formiga com uma lupa, em uma tarde de verão. (gostaríamos de deixar claro que nenhuma formiga foi queimada durante a redação deste texto).

Magias de ar podem ser tão poderosas quanto se queira, e sua capacidade de interagir com outros elementos a torna ideal para evitar proteções mágicas específicas (no exemplo acima, por exemplo, o incêndio dos barcos não seria causado por uma magia de fogo, propriamente dita). Conceitos como pressão e seus efeitos também podem dar margem a um leque vasto de opções: já pensou no que um assassino, com leve aptidão mágica (daquelas bem xinfrins mesmo, praticamente made in paraguay) pode ser capaz de fazer, apenas com magias do ar?


Bem, não é necessária uma arma para ferir alguém. E é perfeitamente possível assassinar um sultão em seu trono, cercado por toda sua guarda de elite, sem mover um dedo – e ainda fazer com que ele aparente ter morrido de causas naturais.

Duvida?

A chamada “doença da descompressão” ou bends é uma ameaça terrível à segurança dos mergulhadores: só depois que pilotos sofreram cegueira temporária durante a Segunda Guerra Mundial, é que a doença foi realmente estudada – e medidas de segurança passaram a ser tomadas. No caso de um mergulhador, o que ocorre é que mesmo o bardo mais descontraído do reino litorâneo (ao nível do mar) vive sob constante pressão: 1kg/cm2 , o que chamamos de “uma atmosfera”. Mas, quando um nadador mergulha, o peso da água sobre ele é acrescido a essa pressão e, a uma profundidade de 10 metros, o nadador passa a estar sujeito a uma pressão de “duas atmosferas”, devido a quantidade de água sobre ele. E, quanto mais profundo, maior a pressão, que vai agir sobre ele (você pode somar exatamente uma atmosfera a cada 10 metros de profundidade). Se este nadador estiver a uma profundidade considerável e resolver emergir rapidamente, pode acontecer de pequeníssimas bolhinhas de nitrogênio bloquearem pequenos terminais de vasos sanguíneos, causando dores imensas por todo o corpo, principalmente nas juntas, além de tonteira, paralisia temporária e mesmo convulsões.

Ok, você pode dizer agora que o tal sultão lá do início do texto está sentado confortavelmente em seu trono, protegido pela sua guarda real e que o assassino possui apenas uma leve aptidão mágica – o que não é o suficiente para transporta-lo ao fundo do mar, sujeitando-o a uma pressão de 5 ou 6 atmosferas, para então trazê-lo a superfície rapidamente, fazendo com que ele morra devido ao bends. Além do quê, estamos falando de magias de ar, e não de magias de “teleporte para o fundo do mar”: então, antes de o assassino preparar sua magia, que tal pensar um pouco no ar e no que é a pressão, sob o ponto de vista molecular?

Daniel Bernoulli

O primeiro cientista a fazer isso foi Daniel Bernoulli, em 1738. Ele imaginou um cilindro vertical, fechado, com um pistão no topo (o pistão tendo um peso agindo sobre ele). Ambos (o pistão e o peso) seriam então suportados pela pressão existente dentro do cilindro.

Bernoulli descreveu o que ocorria dentro do cilindro da seguinte forma:

“imagine que a cavidade contenha partículas muito pequenas, se movimentando de maneira frenética para lá e para cá, de modo que quando estas partículas batam no pistão elas o sustentem com repetidos impactos, formando um fluido que expande sobre si caso o peso seja retirado ou diminuído…”

Exatamente o que mostra a figura:

Como de costume na história da física, apesar de correto, seu relato não foi aceito de maneira geral: a grande maioria dos cientistas da época acreditava que as moléculas de um gás estavam em repouso, repelindo-se à distância, fixas de alguma forma pelo que deveria ser o éter (um dia prometo falar mais a respeito). Porém, Isaac Newton (também conhecido como “um dos maiores CDF´s de todos os tempos”) mostrou que o fato de PV = constante seria uma conseqüência da teoria de Bernoulli, desde que a repulsão dependesse inversamente do quadrado da distância. Muito tempo depois disso, em 1820 o inglês John Herapath deduziu uma relação entre pressão e velocidade molecular e tentou publicá-la pela Royal Society (a academia de ciências britânica, da qual Newton foi um dia presidente). O então presidente, Humphry Davy, rejeitou a idéia: segundo sua réplica, igualarmos pressão e temperatura (como feito por Herapath), implicaria na existência de um zero absoluto de temperatura – uma idéia que Davy relutava em aceitar…


MAS O QUE ENERGIA MOLECULAR TEM A VER COM PRESSÃO ??

Não deve ser difícil para você entender o modelo de Bernoulli, se conseguir relacionar a pressão de um gás com sua velocidade molecular: para um RPGista, esse pequeno exercício mental é mais do que fácil: basta se concentrar em uma pequena partícula dentro daquele volume todo de ar dentro do pistão, movimentando-se rapidamente de um lado para outro dentro do tal cilindro. Afinal, o gás ali contido é composto por muitas, mas muitas partículas – apenas isso. Então, pensando nessa partícula, sabemos que ela deve ter uma massa m (ei, tudo o que ocupa lugar no espaço possui massa, certo? E se eu não quero fazer contas com números, qual o problema em chamar a massa de m, a velocidade com que se move dentro do cilindro de v e o comprimento do cilindro de L? É a velha história do “o que tem asa, bico e se guarda embaixo da cama...”). Enfim, lá está o pistão, “tampando” a extremidade superior, de modo que todo o movimento é ao longo da mesma direção: Obviamente, o pistão não sente uma força contínua, mas uma série de impactos igualmente espaçados! Nossa partícula não fica ali parada empurrando o pistão para cima, como se fosse um pobre desafortunado empurrando seu carro sem gasolina pela rua! Ela se move de um lado para o outro, como a platéia do show dos Ramones ao som de Surfin´Bird (sim, eu estava lá! E cara, como me machuquei nesse dia…), colidindo com as extremidades do cilindro.

No entanto, se o pistão for muito mais pesado que a partícula (o que é obviamente verdadeiro), isto acaba gerando o efeito que uma força suave aplicada durante tempos longos (comparados com o intervalo entre os impactos).

Bem, não foi realmente complicado entender isso, foi? Agora, se aplicarmos a lei de Newton (na forma força = taxa de variação do momento) podemos criar uma regra geral para o caso de lidarmos com muitas partículas que se movimentam dentro daquele cilindro: a pressão é a força por unidade de área, P = F/A. É claro que não sabemos quais são as velocidades verdadeiras de cada molécula em um gás, mas cá pra nós, não precisamos deste detalhe! Ao menos, não neste momento, pois o que procuramos é um resultado impressionantemente simples – exatamente o que acabamos de obter!! A pressão macroscópica de um gás é diretamente relacionada à média da energia cinética das moléculas: óbvio que não consideramos neste raciocínio as complicações devido às interações entre partículas: nosso resultado serve para gases como o ar, em temperatura ambiente (onde as tais interações são muito pequenas). Além do mais, se você está cursando (ou já cursou) o ensino médio, é bem capaz de já ter ouvido falar que a maioria dos gases satisfaz a algo chamado de “lei dos gases ideais” (PV = nRT), sob um grande intervalo de temperatura.

E POR FALAR EM TEMPERATURA…

James Clerk Maxwell, o do Dêmonio que faz o Tiamat parecer um hamster...

Por volta de 1850, os cientistas enfrentavam várias dificuldades envolvendo as teorias existentes sobre o calor. Isso acabou levando alguns deles a olhar novamente para a tal teoria cinética de Bernoulli. Porém, pouco (ou quase nenhum) progresso foi realizado até Maxwell (aquele do demônio, lembra?) atacar o problema, o que aconteceu em 1859. E podem crer, foi um ataque surpresa com espada vorpal e bônus de pelo menos +12, porque ao trabalhar com o modelo de Bernoulli, Maxwell pôde observar que era praticamente impossível analisar um sistema de cilindro&pistão usando as leis de Newton (existem variáveis demais envolvidas, o que daria uma trabalheira dos diabos só para se começar a escrever as equações). Ao que parece, Maxwell também deveria ter algum tipo de bônus alto em jogadas de raciocínio, porque ele observou que uma descrição completa de como cada molécula se move não é necessária: o que é necessário é a compreensão de como este modelo microscópico se conecta com as propriedades macroscópicas (que conseguimos observar a olho nu). O resumo da ópera é que a informação microscópica realmente importante não é conhecer a posição e velocidade de cada molécula dentro do cilindro a cada instante de tempo, mas sim sua função distribuição: é o mesmo que ir lá e ver o qual o percentual de moléculas que está em certa parte do recipiente, e qual o percentual cuja velocidade está dentro de certo intervalo, a cada instante de tempo. Como para um gás em equilíbrio térmico a função distribuição é independente do tempo, basta ignorarmos algumas pequenas correções que precisariam ser feitas devido à gravidade e o gás se distribuirá uniformemente no recipiente, de modo que o único dado desconhecido é a função distribuição de velocidade. Mas quem se importa com ela?

Bem, o Demônio de Maxwell se importa…

MAS O QUE TUDO ISSO TEM A VER COM O ASSASSINATO DO SULTÃO???

Assassino? Mas que Assassino???? Ah, você deve estar se referindo ao cozinheiro do sultão: foi um escândalo no castelo, todos ficaram abismados com o acontecimento… ao que parece, durante uma audiência com um desconhecido, Sua Alteza passou muito, muito mal…aos poucos, começou a se queixar de pequenas dores no corpo, para depois se sentir tonto, perder a visão e sofrer uma terrível crise convulsiva, morrendo ao final do processo. O pobre estrangeiro que estava no salão real ficou tão abalado, coitado! Pior que a autópsia não encontrou nenhum sinal de envenenamento, o que só prova a culpa do cozinheiro, que deve ter usado um veneno realmente muito raro!

Ou isso, ou alguém foi capaz de manipular a pressão do ar ao redor do sultão, para que ele sofresse o efeito do bends. Mas isso não seria possível…. Seria?

E A DRAGÃO BRASIL COM ISSO?

Robert Brown cujo nome batizou o fenômeno Movimento Browniano

Em duas palavras: Movimento Browniano! Afinal, estamos falando que os gases são compostos por moléculas, e para que tudo o que dissemos hoje seja aceitável, é preciso crer realmente nisso. E uma das demonstrações mais convincentes a respeito é justamente o movimento Browniano, notado pela primeira vez por um botânico escocês, que inicialmente supôs que esta observando criaturas vivas, mas então observou que o mesmo movimento em partículas inorgânicas. Einstein mostrou como usar o movimento Browniano para determinar o tamanho de átomos: trata-se apenas do movimento frenético de pequenas partículas, tais como fragmentos de cinzas na fumaça. Este movimento dá nome a minha coluna favorita da Revista Dragão Brasil


Leia os artigos anteriores do autor:

Física & Magia
Interlúdio
“Física no RPG ”
“RPG e Física. Alguma relação?”
Por Francisco de Assis Nascimento Júnior

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